Houve um tempo em que eu achava que nada poderia ser mais gratificante na seara jornalística do que a publicação de material quente, impactante, o chamado furo de reportagem. Não demorei a descobrir que a coisa não é tão simples assim, que às vezes há informações que por este ou aquele motivo são deliberadamente sonegadas ao público, outras vezes é o próprio jornalista que não dá conta do recado. Isso quando não são as duas coisas, o que parece cada vez mais comum hoje em dia, ainda mais na imprensa regional, em que a combinação de inapetência e comprometimento costuma ser letal para o bom jornalismo.
Sim, pois se um veículo de informação pautado pela acomodação e autocensura já é a treva, como diria aquela garota da novela, imagine-se uma redação que não consegue sequer vislumbrar o potencial de um assunto, atinar com o que tem ou não valor jornalístico. O que nem sempre é uma tarefa fácil, é verdade, mas é por aí que as coisas acontecem, ou deixam de acontecer. Como bem frisou Luiz Antonio Magalhães ainda outro dia, em seu enxuto texto de despedida neste Observatório, lapsos, deslizes e até eventuais omissões são até certo ponto desculpáveis na imprensa em geral que, afinal, é feita por gente de carne e osso, com suas imperfeições e tudo mais. Portanto, não é bem por isso que o caldo volta e meia azeda. Errar, todo mundo erra; imperdoável é quando a coisa é premeditada e deliberadamente desvirtuada, quando a tergiversação e o superficialismo servem de biombo para escamotear não só a incompetência como a própria covardia para o pleno exercício do ofício.
Um autêntico balcão de negócios
Que outra definição pode haver para uma imprensa que se recusa a ir fundo nos fatos, que faz como avestruz, prefere lavar as mãos ao invés de fazer o que lhe compete? Que outra impressão pode causar a caricatura de jornalismo que aqui se pratica, e cuja ojeriza por assuntos mais polêmicos é tão notória que raramente, ou só incidentalmente, são explorados como deveriam. Não só em relação à administração do prefeito de Santos, João Paulo Papa, sintomaticamente o único da região com larga aprovação popular, mas em relação a praticamente tudo que possa trazer algum desconforto e/ou afetar os interesses comerciais da casa. Mesmo que isso signifique acobertar mazelas e mesmo escândalos que uma imprensa minimamente responsável tem a obrigação de levar ao conhecimento público.
Como é o caso dos fortes indícios de maracutaias financeiras que vão aflorando no Santos FC, relativas à administração passada, na medida em que a diretoria recém-empossada toma pé da situação, mas que a imprensa local, por enquanto, mal e porcamente vem noticiando. Ainda que a auditoria contratada não esteja concluída, pelo que já se ouvia aqui e ali de dirigentes o assunto não poderia de jeito nenhum ser ignorado ou levado em banho-maria, como tem feito A Tribuna, ao limitar o assunto a notinhas esparsas numa coluna que prima pelo lero-lero. Fico pensando, acerca de tal parcimônia, se a revelação do sumiço de cerca de R$ 12 milhões de reais das contas do clube que, aliás, sequer teriam sido contabilizados, relativamente à venda do atacante Rodrigo Tabata para o futebol grego em 2007, não é suficientemente grave para justificar um tratamento mais amiúde, o que será capaz de mexer com os brios desse pessoal?
Afinal, trata-se de suspeitas que em qualquer outra atividade seriam passíveis até de cadeia, ou no mínimo uma investigação criteriosa. Sem falar que a coisa não se resume a isso. Na verdade, parece ser apenas a ponta de um iceberg de irregularidades e delitos de toda espécie. Desde a discrepância entre valores anunciados e efetivamente pagos em várias transações de atletas, principalmente as que tiveram a participação do notório empresário Juan Figger, que mantém um clube de fachada no Uruguai só para servir de ponte em revendas altamente lucrativas – consta que pagou 1 milhão de dólares ao Santos por Maldonado, para em seguida passá-lo por quatro vezes mais –, aos mais variados e estarrecedores exemplos de sangria e evasão de recursos, envolvendo mesmo as divisões de base, em que campeava um autêntico balcão de negócios, sem falar no sem-número de ex-atletas e apaniguados do ex-presidente que mamavam nas tetas do clube.
Acomodação e leniência
Não que isso seja novidade no meio futebolístico, e muito menos uma primazia do Santos, se bem que o histórico do clube nesse aspecto é de tirar o chapéu. Os mais velhos hão de lembrar da fatídica aquisição do antigo hotel Parque Balneário, um saco sem fundo em que se esvaíram os recursos da fase áurea do clube, marcado também por outros sumiços de grana que deram o que falar, como a cota da renda de um clássico contra o Corinthians, subtraída de um cofre em plena Vila Belmiro num suposto assalto cuja investigação nunca deu em nada. Ou, mais inverossímil ainda, a mala de dinheiro que desapareceu numa das inúmeras excursões do time – que as más línguas se encarregaram de espalhar ter caído do avião. Nada, porém, comparado aos relatos de falcatruas e malversação de recursos que resultaram, anos atrás, no indiciamento pela CPI do futebol do grupo levado por Pelé ao comando clube e que agora, com as evidências de rapinagem ainda maior por parte de uma diretoria da qual se dizia tudo menos de ser desonesta, deixa a imprensa na obrigação de apurar devidamente os fatos e passar a limpo as versões que correm.
Ocioso dizer que nada justifica contemporizar, fazer vista grossa ante revelações tão graves, sob pena de o futebol e nossos clubes jamais deixarem de ser extorquidos por dirigentes inescrupulosos e aproveitadores de todas as espécie. E isso não só em relação ao Santos, é claro, já que a rapinagem é generalizada, a ponto de a Fifa finalmente se decidir a intervir, no sentido de combater o que chama de lei das selvas que impera no meio futebolístico da América do Sul, e em especial no Brasil, num relatório que aponta nosso país como um paraíso para a lavagem de dinheiro e transações ilícitas. Segundo o enviado especial do jornal O Estado de S. Paulo a Genebra, Jamil Chade, na matéria divulgada na edição de domingo (21/2), a entidade irá impor ainda este ano normas que possibilitem não só o monitoramento das transações como restringi-las aos próprios clubes, eliminando assim a ação dos empresários e intermediários que proliferaram graças às brechas de legislações capengas como a Lei Pelé.
Bom demais para ser verdade, pensei cá com meus botões, não só pela paulada e tanto que isso deve representar na mamata dos parasitas da bola, como para compensar em parte o complô que atravanca a reforma da legislação esportiva por parte do Congresso. Complô este que na semana retrasada, na surdina e sem qualquer alarde da imprensa, fez com que fosse rejeitada a lei que prevê a responsabilização material e criminal para dirigentes infratores. Da mesma forma, aliás, como as demais propostas de moralização de nosso futebol vêm sendo sistematicamente engavetadas ao longo dos anos, com a anuência não menos execrável de uma imprensa esportiva que, pelo menos no que tange a quem dá as cartas – a Globo e seus afiliados –, tem preferido estar ao lado dos vendilhões do templo.
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Jornalista, Santos, SP