Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A banalização como virtude

De antemão reconheço: o presente tema não é original. Aqui mesmo, neste Observatório, já ocupei este espaço para o registro de um olhar sobre as relações entre mídia e banalização do real. A despeito da constatação, porém, eis que, por alguma insistência de origem neurótica, à questão retorno. Sem refutar o impulso neurótico, também – convenhamos – vivo num país no qual, quase diariamente, fatos são ampla e fartamente noticiados, tendo, por princípio, a exposição do insólito.

Em certo nível, dada a freqüência de episódios bizarros tanto patrocinados por altos escalões governamentais quanto alimentados pelo agitado showbiz, a reação tende a substituir o espanto por um certo estado complacente que beira a indiferença. Já este modo quase inercial constitui em si preocupação. Todavia, algo de mais grave ainda suplanta: a conduta dos meios de comunicação quanto ao tratamento dispensado à esfera acadêmica. É nesse ponto que o retorno ao tema se impõe: é uma retomada pelo acréscimo de ingrediente novo.

Mídia e academia

A revista CartaCapital (edição de 30/3/05) ofereceu atraente matéria de capa: ‘A vulgaridade em alta’. Como leitor habitual da mencionada revista, direto fui à reportagem assinada por Pedro Alexandre Sanches. Ali consta um previsível mapeamento das tendências de consumo quanto ao que oferece a ‘indústria do entretenimento’ – para evitarmos a tradicionalizada expressão, cunhada por Theodor Adorno, ‘indústria cultural’, que, pelo adjetivo, não mais se presta para tipificar algumas produções.

A matéria, como um todo, procura agenciar diversos ângulos, desde considerações de caráter comportamental até sentenciamentos contundentes. A princípio, fica a idéia de haver lugar para todos, o que é salutar para a respiração democrática.

Numa sociedade livre, todos os segmentos e todas as tendências devem ser assegurados. O problema, porém, é que o princípio em si não é respeitado, possibilitando ondas sucessivas de ‘invasões’ com a força de modelagens. Nesse ponto, tem início o processo de descaracterização das liberdades de representação, passando-se ao arbítrio da massificação, com todo o perigo do que isso sinaliza para a preservação e qualificação da democracia. E não precisamos invocar aqui o testemunho do pensamento de Walter Benjamin.

É sabido que o casamento entre discurso midiático e jargão acadêmico, principalmente no modelo vigente no Brasil, não gera bons frutos. Há incompatibilidade em todos os níveis: os registros não se afinam, tampouco os propósitos, o que torna o resultado final inoperante ou perigosamente transfigurado. Sob o até louvável esforço de cobrir diferentes visões, na verdade esse modelo de reportagem (mescla de recorte comportamentalista e sofisticação intelectual) dificilmente escapa de uma ideologização da qual sai chamuscada ou esvaziada a reflexão acadêmica propriamente dita, redundando num produto esquizofrenizado.

Vamos ilustrar o que ocorreu com certo depoimento cuja credencial representa o segmento acadêmico:

‘Por que não posso consumir ‘proibidão’, mas posso consumir Arnold Schwarzenegger, ‘Duro de matar 5’? A pulsão de morte não está só na favela, está no capitalismo, no mapa de desigualdade social, na relação empregado-patrão. A única novidade em termos de cultura brasileira contemporânea é que as classes inferiores começam a se expressar em pé de igualdade com as superiores. O preconceito está sendo rompido de dentro, da favela para fora. Essa nova consciência social não veio pela universidade nem pelo Estado. Veio pelo hip-hop, pelo funk, pela própria favela, que pode até ser modelo de política pública. O Estado aprende mais com esses movimentos comunitários que o contrário’. (p. 59)

Há, no depoimento, nítido timbre reflexivo, analítico. Todavia, quem o externa tem plena ciência de que deve ser conciso, claro e interessante. O problema é saber se essa fórmula se torna viável, sem comprometer-se o principal: a qualidade crítica da reflexão.

Que o teor acrítico esteja, há algum tempo, configurado nos setores midiáticos (impressos e eletrônicos) é fato sobejamente conhecido. Porém, que o perfil seja autenticado no âmbito acadêmico é um acontecimento a sinalizar gravíssimas perspectivas. Mais sério ainda é o quadro, se levarmos em conta que a publicação da matéria coincidiu com a semana na qual um professor universitário se torna a ‘celebridade’ contemplada com a ‘módica’ quantia de 1 milhão de reais, graças à sua participação ‘vitoriosa’ num dos ‘produtos’ mais abomináveis e insuportáveis da TV brasileira. Deixemos, contudo, a adjetivação em favor da argumentação.

Réplica necessária

Primeiro ponto a destacar no depoimento é o sofisma: quem disse haver diferença entre consumir ‘proibidão’ e ‘Duro de matar 5’? Há alguma dúvida quanto a serem dois subprodutos? Segundo ponto: é claro que a pulsão de morte é parte constitutiva do capitalismo, não bastasse mencionar O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, ou mesmo, nas reflexões anteriores de Herbert Marcuse, em Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud, para não mencionarmos as próprias formulações de Freud, tanto em O mal-estar na civilização quanto em Além do princípio de prazer e O futuro de uma ilusão.

Nenhuma dessas fontes, entretanto, suporta o que, em nome delas, se tente afirmar quanto ao abastardamento da cultura, a exemplo do que o terceiro ponto declara: a expressão igualitária das ‘classes inferiores’ em relação às ‘classes superiores’.

Para início, já é problemático o emprego dos adjetivos (‘inferiores’ / ‘superiores’). Acredito que criticamente melhor convenha o uso de ‘cultura’ x ‘subcultura’. Feito o ajuste semântico, cabe assinalar que o depoimento dá a entender que agora as ‘classes inferiores’ se estão expressando? Em que período da história comunidades da periferia (julgo classificação mais adequada que ‘classes inferiores’) ficaram sem auto-expressão? O problema é outro: visibilidade e invasão.

A mídia atual, na incontida ânsia de angariar público, vem sistematicamente difundindo subprodutos cuja assimilação por parte de segmentos das camadas média e alta encontra plena aceitação, fato decorrente da desqualificação cultural de quem ascendeu apenas economicamente. Trata-se, pois, de outro sofisma: onde está o ‘pé de igualdade’ assinalado no depoimento? Em que lugar do Brasil a qualidade cultural está em regime de igualdade com a exibição de subproduto? Jornais, revistas, emissoras de rádio e TV conferem iguais espaços e tempos? Sabemos que se trata exatamente do contrário. A cultura se encontra asfixiada e sitiada, em oposição à avalanche do entretenimento simplório.

Em outras épocas, havia um sistema educacional (tanto público quanto particular) que se ocupava de elevar o nível de todos os segmentos. Quem estava culturalmente deficitário buscava qualificar-se; quem culturalmente estava situado não fazia concessões de qualidade. Nesse mundo de outrora, um professor universitário sabia que dignidade conferir ao exercício de sua profissão e à condução de sua carreira. Como tal, não se prestaria a ‘experiências’ infantilóides. A própria cultura de massa mantinha certa filtragem.

A culpa, portanto, não reside na oposição ‘cultura de massa’ x ‘cultura erudita’. Quando há qualidade, a fronteira se torna flexível. Quando, porém, há processo degenerativo, a fronteira desaparece para entronizar o subproduto. A música brasileira, até pouco tempo, em seu amplo arco de variações, estava repleta de requintadas composições com livre trânsito em distintos registros. Enfim, espera-se que o pensamento acadêmico quando se apresenta ao modelo midiático não pode transigir, sob pena de desfigurar-se.

A vulgarização totalitária

O problema que, a rigor, poucos aceitam publicamente assumir – até para não passarem por elitistas, preconceituosos e antidemocráticos – é que o país se está esgarçando em todos os níveis: político, educacional, cultural e ético. Quem tem discurso crítico não dispõe de canais para expressão. Quem predominantemente os ocupa tende a oscilar entre o tom demagógico e o auto-investimento na imagem (marketing pessoal). O consumo de ‘produtos do entretenimento’ está nivelado por baixo, tornando os segmentos societários indiferenciados.

Vale dizer: o Brasil se caracteriza por um modelo capitalista (na sua versão mais perversa), no tocante a classes econômicas, e por um modelo de vulgarização totalitária, quanto a padrão cultural. Nessa bastarda combinação, os cérebros movidos a inteligência vivem confinados, discriminados e recusados. As autoridades públicas, em lugar de promoverem políticas de inclusão, acompanhadas de qualificação cultural, fazem continhas na maquininha de calcular que tanto somam arrecadações quanto arrebanham votos.

Por fim, a matéria de CartaCapital, que parecia conclamar o leitor a uma reportagem crítica, na verdade reafirma tendências, injetando, no miolo do texto, declarações incômodas cujo efeito é neutralizado por depoimentos que as sucedem. No mais, o enfoque contorna a questão, como dita o modelo, fechando com seguinte ‘pérola de frase’: ‘Nesse rebolado, o Brasil vai mostrando suas muitas caras’.

De minha parte, opto por encerrar o artigo com frase de perfil bem diferente: ‘Um dia, infelizmente, pelas tantas escolhas erradas, conheceremos o monstro que, passo a passo, criamos’.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)