Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A barbárie da bolinha de papel

José Serra, como ex-ministro da Saúde, deveria saber que o ser humano não é feito de papel, tem sentimentos. Também não é (só) feito de fel, salvo em alguns momentos. Mas ele não sabe de nada disso. Caçoa, zomba da inteligência alheia, ridiculariza a si próprio. Não mais se pode ver ao espelho com o perigo de este se voltar contra si.


Na tarde de quarta-feira (20/10), resolveu caminhar pelo calçadão de Campo Grande, reduto popular do Rio de Janeiro. Acenava para o vento, mas mesmo este não tem andado a seu favor. Iniciou-se uma confusão, embate natural entre militantes de causas tão distintas, quando, de repente, Serra é atingido na cabeça por algo. Continua acenando para o vento durante 20 minutos, quando após um telefonema, leva as mãos à cabeça. Foi a senha para fotógrafos bem treinados transformarem confusão em tragédia, showmício em showrnalismo.


O telejornal noturno da emissora autointitulada líder de audiência levou para o povo, que tanto ama, a seguinte informação: ‘Serra foi agredido por petistas’. O jornal O Globo do dia seguinte, que hoje representa verdadeiro monopólio no Rio de Janeiro, enfatizou. Sem elementos para afirmar de onde partiu o tal objeto, colocar a culpa na militância petista só pode ser entendido como calúnia, injúria, infâmia, difamação e outros nomes piores. Tudo passível de processo, caso o partido estivesse interessado. Mas o diabo, às vezes, se esquece da concorrência, ou talvez a menospreze, o que é mais provável.


Tudo em casa


Pouco depois de o JN mentir descaradamente, o jornal do SBT levou ao ar vídeo elucidativo. O ‘objeto pesado’, antes tido como um rolo de fita crepe, não passaria de uma mísera bolinha de papel que, ainda por cima, foi claramente atirada com pouca força. Vamos combinar que se isso é ‘agressão’, guerra de travesseiro também é. Era o caso de o isento conglomerado midiático global levar ao ar um plantão: erramos! Era o caso de o diretor de redação do jornal impresso, a sair horas depois, ir à gráfica e gritar: ‘parem as máquinas, erramos!’ Mas nada disso foi feito. Porque não foi erro, foi pouca-vergonha mesmo.


Pouca vergonha de tumultuar um processo eleitoral já tão tumultuado e com um teatro de quinta. Teatro que, além de Serra e seus jornalistas amestrados, contou com atores de renome, como o doutor Jacob Kligerman, cirurgião de cabeça e pescoço, que atendeu o ‘ferido’ em uma clínica em Botafogo. O citado médico é diretor do Inca e amigo do candidato. Quem disse que Serra não tem amigos? Além disso, o doutor Kligerman foi secretário municipal de Saúde do Rio, durante a gestão do ex-prefeito César Maia. Tudo em casa.


O arbítrio máfio-midiático


É digno de nota que o jornal carioca O Dia cumpriu hoje um bom jornalismo ao dar manchete para o incidente simplesmente como uma ‘confusão’.


Mas, para o bem ou para o mal, este episódio foi amplamente noticiado. Enquanto isso, cinco dias antes, em 15 de outubro, o jornal O Estado do Acre, terra de Chico Mendes, berço do PT, dava um grito sem eco: denunciava sozinho que um militante petista foi morto por um opositor por motivo absolutamente torpe: o petista teve a infelicidade de fazer uma brincadeirinha, colando nas costas do outro um adesivo pró-Dilma. Foi o suficiente para o sujeito ir até sua casa, pegar uma espingarda, voltar ao bar onde estavam e assassinar friamente o petista, com uma única bala disparada à queima-roupa. Selvageria pura.


O assassino está até hoje foragido. Imaginem se fosse o contrário e ele fosse do PT? Mereceria de certo um plantão da Rede Globo, com um indignado casal de apresentadores, e uma capa especial da Veja, sob o título: ‘Chico Mendes chora’.


Este arbítrio máfio-midiático a que o brasileiro que não tem internet está submetido é o que emperra a democracia. É verdadeiramente o que se pode chamar de barbárie. O resto é bolinha de jornal.

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Jornalista e escritora, editora-chefe do blog Quem tem medo do Lula?