Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A brincadeira se repete

No dia 15 de outubro de 1938, a rádio estadunidense CBS (Columbia Broadcasting System) mandou ao ar uma adaptação radiofônica do romance de H. G. Wells (1866-1946) A guerra dos mundos. A transmissão espalhou pânico nos Estados Unidos: a população acreditou que a Terra estivesse sendo invadida por marcianos. O intérprete foi Orson Welles (1915-1985), que com apenas 23 anos tornou-se famoso em todo o país. Três anos depois, dirigiu e foi protagonista de Citizen Kane, colocado pelos cinéfilos entre os 10 melhores filmes até hoje produzidos, tendo como tema central o poder da imprensa.

Com o filme, tornou-se um nome mundial . Esteve no Brasil em 1942 para fazer o inacabado It’s all true, e deixou a lembrança de suas esbórnias monumentais quando, da janela do seu apartamento no Hotel Copacabana Palace, jogava os móveis dentro da piscina. O efeito da transmissão de A guerra dos mundos hoje seria impossível – na época as notícias andavam lentamente, não existia a televisão e não se sabia que Marte era desabitado.

Imagens confusas

Mesmo assim, algo parecido aconteceu na Bélgica. Nação do tamanho do estado de Alagoas, com quase 10 milhões de habitantes e ocupando o 13° lugar no Índice de Desenvolvimento Humano, a Bélgica é dividida culturalmente em três partes: a flamenga (Flandres), a francófona (Valônia) e a germanófona (Bruxelas).

Há uma idéia separatista latente, com 6 milhões de flamengos, responsáveis pelo bom desempenho da economia nacional, cujo Produto Interno Bruto é 25% superior ao da Valônia. Na quarta-feira 13, 8 e meia da noite, hora da maior audiência televisiva, a RTBF (sistema publico de televisão) estava com seu telejornal no ar quando apareceu na tela François de Brigode, conhecido jornalista, que, com uma expressão acabrunhada anunciou: ‘Flandres proclamou unilateralmente sua independência!’. A linha passou para Frederic Gersdoff, direto do Palácio Real, que disse terem o rei Alberto II e a rainha Paula deixado o país num avião militar, concluindo: ‘A Bélgica não existe mais’.

Nesse meio tempo podiam ser vistas imagens confusas do casal reinante subindo num meio de transporte militar, e depois mostrar milhares de nacionalistas flamengos que comemoravam o fato. O repórter continuou dizendo que o rei e a mulher se refugiaram numa cidade próxima e os pára-quedistas estavam para invadir a sede da televisão. O deputado Jean-Marie Dedecker, famoso por suas opiniões separatistas, mostrado pelas câmeras declara: ‘O meu sonho finalmente foi realizado’.

Crença no espetacular

Já eram nove da noite, passaram-se 40 minutos da edição extraordinária, quando apareceu uma legenda no vídeo: ‘Você está vendo uma ficção!’. A brincadeira acabou e começou a tempestade. ‘Num momento em que o país está vivendo tensões separatistas é irresponsável e desprovido de sentido cívico fazer acreditar que os flamengos pedem a independência’, protestou o primeiro-ministro Verhofstad. O vice, Didier Reynders, esbravejou: a transmissão colocou em jogo a reputação da Bélgica no momento em que se prepara reunião dos países da União Européia (de fato, muitas embaixadas viveram minutos de pânico sem saber o que informar às capitais).

A rede RTBF se desculpou, explicando que a transmissão queria levar ao público o debate sobre o risco de que a Bélgica venha a explodir. Com sucesso, visto que os belgas, como costuma acontecer, acordaram do torpor da vida cotidiana. O impacto foi enorme: os espectadores entraram em contacto com os SMS de amigos, parentes e os meios da mídia e até o pronto-socorro foi tomado por telefonemas de gente que queria informações precisas. ‘Levei a cosa a sério, estava pronto a entrar num avião para voltar a Bruxelas’, declarou o comissário da UE Louis Michel, que estava em Nairóbi.

Passados quase 80 anos da ‘brincadeira’ de Orson Welles, a capacidade do ser humano de acreditar no espetacular permanece idêntica.

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Jornalista