Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A caça ao poder no Pará

Os Maiorana e os Barbalho estão em nova rodada de escaramuças. Desta vez não é apenas por motivos políticos: as razões comerciais se tornaram mais fortes. Agora, o grupo Liberal já não é o único dono das comunicações no Pará. A situação mudou de vez ou pode reverter? É o que está por trás da nova temporada de acusações.

Começou e está em pleno curso uma nova temporada de caça entre os Maiorana e os Barbalho, que dividem – e disputam – o controle das comunicações no Pará. Desta vez, a declaração de guerra partiu do grupo Liberal. Uma sucessão de matérias foi desencadeada a partir do dia 16, quando o jornal O Liberal noticiou, com grande destaque, a proposição de uma ação civil pública em Brasília. O Ministério Público do Distrito Federal requereu a extinção da concessão feita à TV RBA e a realização de uma nova concorrência para o canal 13 de televisão. Alegou que a transferência da concessão para o Sistema Clube do Pará de Comunicação, como forma de contornar o impedimento à renovação, por causa dos débitos da RBA junto ao governo federal, violava os princípios da legalidade, da moralidade e da impessoalidade.

A ação tramita perante a 1ª vara da justiça federal em Brasília. Se a liminar requerida pelo MPF não for concedida, o processo deverá seguir a instrução regular, com provas e contra-provas, alegações e contraditas. Enquanto isso, será mantido o status quo: a Rádio Clube, como sucessora da RBA, continuará a usufruir do canal 13, cuja concessão foi renovada pelo Ministério das Comunicações, graças à renegociação do seu débito, principalmente previdenciário. A dívida seria de 80 milhões de reais, segundo o grupo Liberal, ou de um valor ‘infinitamente menor’, de acordo com a RBA, que não se referiu a números na nota que divulgou.

Enquanto a questão fica à espera de uma definição judicial, a opinião pública, acostumada a essas escaramuças sazonais, se pergunta pela motivação real por trás do reaquecimento das denúncias do grupo Liberal. Elas visam o principal inimigo e concorrente dos Maiorana, o deputado federal Jader Barbalho, sócio-cotista tanto da RBA quanto da Rádio Clube (e por isso, independentemente do aspecto legal referente à renovação da concessão, responsável solidário pela quitação do débito, numa como noutra empresa).

Rosas e espinhos

O incidente em torno do canal, embora tenha seu significado intrínseco e constitua assunto de real interesse público, serviu de pretexto para uma nova onda de ataques contra o líder do PMDB no Pará. Há dois componentes no contencioso, o comercial e o político. O comercial foi agravado pelo enfraquecimento empresarial do grupo Liberal e a ascensão do grupo RBA, com destaque para a área do jornalismo impresso, no qual começa a assumir a liderança, pondo fim à hegemonia quase absoluta do jornal O Liberal. A queda de faturamento fez os Maiorana investir com maior agressividade sobre o ponto vulnerável do concorrente: a figura polêmica do seu dono, o político Jader Barbalho.

Há o nítido esforço para destacá-lo, não só explorando seus pontos fracos, especialmente o uso de verbas públicas, como tentando, por meio dele, atingir sua principal aliada política no Estado, a governadora Ana Júlia Carepa. No mesmo movimento em que voltaram as críticas contundentes a Jader, brotaram elogios e mais elogios a Ana Júlia, além de notas curtas e venenosas sobre um desentendimento crescente entre o PT e o PMDB.

As relações entre os dois partidos nunca foram pacíficas e naturais: há suspeitas, animosidades e retaliações mútuas dentro deles, que ainda não foram superadas e é pouco provável que um dia o sejam. Há sempre rastilhos de pólvora sendo espalhados, chegando em alguns casos próximos do ponto de explosão. Os petistas reclamam da entrega aos peemedebistas de órgãos públicos estaduais ‘de porteira fechada’, na sugestiva linguagem dos currais eleitorais. E peemedebistas se queixando de serem sabotados pela direção do PT, ainda mais quando nela há um grupo mais fechado e exclusivista, como a Democracia Socialista. Mas essa pressão das bases fará os líderes dos dois grupos usá-la como arma de combate até um inevitável rompimento aberto e definitivo?

Os Maiorana parecem apostar que sim, disparando notas – com texto até ingênuo, de tão óbvio – para azedar e azucrinar a aliança PT-PMDB, depois de passar o tempo anterior entremeando rosas e espinhos no colo da governadora, ora soprando, ora mordendo. Ao mesmo tempo em que procuram mostrar força, fazendo sentir o quanto será ruim enfrentá-los, oferecem os serviços de sua ainda poderosa corporação. Poderosa sobretudo, a esta altura do enfraquecimento do jornal, por causa da associação com a Rede Globo de Televisão.

Ponto de entendimento

Até aqui, esse jogo tem sido mais favorável aos Maiorana do que aos seus aliados, aliados em trânsito, ex-aliados ou novos adversários. Mas há uma novidade em relação às quedas-de-braço anteriores (com a CVRD, a Rede/Celpa e o Banco da Amazônia): o grupo já não é tão poderoso quanto antes. Pode ser que tenha realmente ingressado numa era de declínio, sem possibilidade de reconquistar a posição anterior. Essa nova situação não está ainda consolidada por deficiência do seu principal concorrente, o grupo RBA. Carente de efetiva profissionalização, ele revela sua fraqueza nos momentos de confronto exatamente por sua estreita vinculação ao ex-ministro Jader Barbalho, que sempre é explorada com bons rendimentos, sejam ou não procedentes os argumentos usados contra ele. Jader é o anti-teflon: tudo que é atirado contra sua imagem, gruda.

Essa fragilidade de imagem do seu grupo de comunicação só não se tornou uma barreira intransponível ao crescimento por dois motivos: a falta de profissionalização do próprio grupo Liberal, erodido por cisões internas, e o surgimento de alternativas comerciais, com ênfase para a Rede Record de Televisão, a que mais tem investido no jornalismo local.

Por diferentes motivos, o longo reinado dos Maiorana nas comunicações deixou de ser um dado inquestionável, tornando-se, na melhor das hipóteses para a corporação, numa dúvida a apurar. O maior anunciante privado do Pará, o grupo Yamada, resolveu pagar para ver: há dois meses se mantém fora dos veículos das Organizações Romulo Maiorana, uma atitude inimaginável até recentemente. O maior precedente anterior foi o da Companhia Vale do Rio Doce, que reagiu a uma campanha agressiva do grupo levando-o à justiça. Mas o presidente da empresa, Roger Agnelli, preferiu contemporizar as coisas e voltar a agradar a família. Os processos dormem a sono solto em duas varas cíveis de Belém, órfãos de movimentação.

Os Yamada manterão a atitude de resistir à pressão dos Maiorana por mais tempo que a Vale, ou por todo tempo que for necessário? Outras empresas seguirão seu exemplo? Começará a se fortalecer uma postura menos condescendente aos atos de império dos Maiorana, que conseguiam fazer prevalecer suas vontades sobre a dos anunciantes – e sobre qualquer mortal em geral no Pará?

A dúvida também se aplica à governadora. As sugestões para que rompa com Jader Barbalho são quase diárias nos veículos do grupo Liberal. Há influentes petistas engrossando esse coro e há peemedebistas tão insatisfeitos com a situação que uma reunião foi convocada para o próximo dia 2. Nela, Jader seria pressionado pelos seus correligionários a endurecer com a governadora e o PT. Ciente desses movimentos, Ana Júlia optou por uma conversa com seu principal cabo eleitoral na eleição do ano passado.

O ex-governador deixou seu veraneio em Fortaleza para uma conversa a portas fechadas e sob luz vermelha, no gabinete de Ana Júlia, no palácio dos despachos da Augusto Montenegro. O encontro durou quatro horas. Dele, o Diário do Pará deu apenas uma curta nota na coluna Repórter Diário. Sugeriu que houve conciliação de parte a parte, com recuos mútuos na busca de um novo ponto de entendimento. O PMDB continuou com a Secretaria de Saúde, mas perdeu seus órgãos internos. Se ainda persistem divergências, a tensão foi rebaixada. Significa que não há antídoto para o envenenamento das relações entre aliados compulsórios, mas eles estão tentando se acomodar.

Jogo de cartas

A atitude tem sua razão de ser na eleição municipal de 2008. Em Belém, por exemplo, com pouco mais de um quinto do eleitorado, PMDB e PT correm o risco de ficar de fora do 2º turno se não somarem votos (se tal for possível). Nenhum dos dois partidos dispõe, hoje, de um nome forte para enfrentar o projeto de reeleição de Duciomar Costa, muito enfraquecido, mas com a máquina nas mãos, e de Valéria Pires Franco, que surge como a alternativa dos derrotados no ano passado, com promessa de retaguarda robustecida. Ou de um tucano capaz de rebrotar do desgaste da legenda e do governo, mas ainda sem qualquer vislumbre de força.

Mesmo que PT e PMDB prefiram ir para o 1º turno com candidatos próprios, expostos a uma derrota já nessa etapa, se um deles passar para o 2º turno terá que somar cada voto para tentar a vitória nessa probabilidade de disputa acirrada. Os votos do PMDB foram decisivos para Ana Júlia derrotar Almir Gabriel. Poderão ter a mesma função em 2008. Uma vitória na capital será um trunfo nada desprezível para Ana Júlia usar em 2010.

Resistir ao canto de sereia do grupo Liberal, porém, terá um preço – e ele não será exatamente barato. Os veículos das ORM têm tido um comportamento dúbio em relação ao governo: ora o apóiam, ora o combatem. A incapacidade de dar um tratamento jornalístico à administração estadual evidencia o movimento pendular da corporação. Como ela ficou dependente das abundantes verbas públicas durante os 12 anos de governos tucanos, não sabe qual o tamanho do custo da abstinência. Por isso, ainda tenta restabelecer a farta dieta antes de experimentar o confronto aberto e, talvez, irremediável.

O problema, nesse caso, é de dosagem: até que momento a hostilidade é eficaz e a partir de quando se torna contraproducente? Qual o limite para passar da apresentação de dificuldades ao oferecimento de facilidades, que constitui a quintessência das campanhas interesseiras? Acostumados a impor sua vontade, os Maiorana podem ter perdido o tato para esse ponto de equilíbrio, tanto em relação às empresas (como no caso Yamada) quanto ao governo. Só que não lhe resta mais escolha: têm que continuar a praticar esse jogo até que ele gere seus efeitos. Ou se torne um jogo de vida e morte, sem alternativas.

Às vezes os jogadores, mesmo os mais habilidosos, perdem o domínio da situação, que constitui sua razão de ser, quando blefam demais. É pouco provável que esse seja um método de sucesso sem fim, mas não se pode dizer que o jogador audacioso ou voluntarioso esteja próximo do desastre sem examinar atentamente as cartas na mesa. Um observador cético da cena paraense, acostumado à fraude recorrente de suas elites, pode achar que há cartas escondidas: debaixo da mesa ou na manga dos jogadores.

O noticiário recente do jornal O Liberal pode ser explicado segundo os parâmetros desse jogo de cartas. Um dos recados para a governadora, que tem as melhores cartas nas mãos (porque controla as verbas públicas), é no sentido de se desgarrar do aliado pesado, que sempre está no meio de denúncias de malversação de dinheiro público, enriquecimento ilícito, tráfico de influência e irregularidades em geral, abusando do poder que seus votos lhe conferem. Se tomar essa atitude, contará com o calor de veículos de comunicação que podem fazer a diferença na hora de influir sobre a opinião pública (embora tenham mais perdido do que ganhado eleições).

Resposta prática

Outro recado é mais sutil. As referências elogiosas a Ana Júlia insinuam que já houve, está em andamento ou pode vir a existir uma negociação secreta entre os Maiorana e a governadora para restabelecer a antiga parceria, muito forte na era dos tucanos, com proveito mútuo. Como não há uma ‘terceira via’ qualificada no Pará, as ondas de boatos vão e voltam desse ponto: um acerto de bastidores entre o grupo Liberal e Ana Júlia, pessoalmente ou com a participação do seu partido. Algumas correntes têm esse dado como real, defintivo, talvez exatamente porque sobrem boatos e faltem informações checadas na mesa do jogo.

Um dos termômetros dessa questão é o contencioso entre a Funtelpa e a TV Liberal. A anulação do convênio, herdado de Almir Gabriel e Simão Jatene, já privou os cofres da emissora de três milhões de reais nestes sete meses. É dinheiro para deixar anêmica uma empresa que gira mais à base do escambo da permuta do que do faturamento real. E que vive uma grave crise de liquidez justamente por causa dessa anomalia comercial. O pior é que, desde o dia 6 de junho, a Fundação de Telecomunicações do Pará é co-autora da ação popular visando anular o tal convênio, por ser um contrato disfarçado para permitir várias irregularidades na relação, e, mais do que isso, fazer a TV Liberal devolver o que recebeu indevidamente. Na conta atualizada, esse débito é de mais de R$ 40 milhões, ou equivalente a metade do que os Maiorana dizem que a RBA deve ao governo federal.

Essa atitude do governo do PT pode não passar de jogo de cena, que não negaria (antes esconderia) o entendimento de bastidores? Não é impossível, mas já não é muito provável. A apelação da Funtelpa contra a decisão da juíza da 21ª vara cível de Belém, Rosileide Filomeno, que, surpreendentemente, considerou legal o convênio, já foi recebida na instância superior do Tribunal de Justiça do Estado. Mesmo que a ação demore a ser definida, prolongando-se até a decisão de último grau, com a mudança de posição da Funtelpa, que deixou de ser ré para se tornar autora da ação, a posição da TV Liberal na demanda se enfraqueceu.

Pode ser também que a estratégia jurídica adotada pelo governo deixe uma brecha para a TV Liberal explorar através de uma ação judicial própria. É que a Funtelpa continua a transmitir a programação da emissora dos Maiorana, apesar de declarar nulo o contrato e suspender o pagamento da mensalidade. Como o advogado da emissora sustenta que ela realiza um serviço de utilidade pública e se qualificou para desempenhá-lo, respondendo à convocação do governo no sentido de reforçar a integridade do Pará através de uma programação televisiva com linguagem e conteúdo regional, a TV Liberal pode ir à justiça para cobrar os quase R$ 6 milhões que lhe cabiam até o final deste ano, prazo que a Funtelpa prorrogou em 31 de dezembro do ano passado. O governo Ana Júlia podia ter simplesmente revogado de imediato esse aditivo, pondo fim, sem qualquer efeito colateral, aos 10 anos de relação esquizofrênica, na qual a Funtelpa pagava caro para ter seus equipamentos e seu pessoal usados pela TV Liberal.

O governo ainda pagará por esse erro, se foi um erro? A resposta prática virá logo, ou muito antes da resposta judicial. Quem prestar atenção, verá.

Respostas: cadê?

Na nota através da qual retrucou às matérias do jornal O Liberal, a direção da RBA julgou ‘importante ressaltar’ que todo o processo de transferência de outorga do canal de televisão que possui para a outra empresa do grupo, a Rádio Clube, ‘ocorreu quando presidia a Comissão de Ciência e Tecnologia, o Dep. Vic Pires Franco, ex-apresentador da TV Liberal e amigo da mais íntima intimidade de Romulo Maiorana Júnior, conhecido como Rominho no seu círculo de amizades, e não quando a presidência do órgão estava sendo ocupada pelo Dep. Jader Barbalho, sócio cotista da RBA, que como todos sabem, é o grande alvo da ação apresentada pelo procurador e divulgada por setores bem identificados da imprensa que lhe fazem oposição’.

Talvez conviesse ao deputado federal Vic Pires Franco retomar a prática salutar que manteve até recentemente em blogs da rede mundial de computadores: responder à nota, esclarecendo se o que ela diz corresponde ou não à verdade e como foi o trâmite da questão durante o tempo em que presidiu a comissão especializada da Câmara Federal.

Mais adiante, a mesma nota garante que a renovação de outorga da TV Liberal ‘tramitou por incríveis 12 anos no Congresso Nacional em virtude da falta de certidões negativas de débito junto a União e só foi concluído no final do ano passado’.

Como até 2005 as demonstrações financeiras de Delta Publicidade, empresa responsável pela edição do jornal, mantinham rubrica com a pendência dos débitos federais, em valores expressivos, a direção da empresa podia esclarecer ao público se conseguiu a renovação porque finalmente quitou a dívida. Como o grupo Liberal não aborda o que não lhe interessa, talvez seja preciso esperar pela publicação do balanço de 2006 para saber. A publicação, como nos anos anteriores, está atrasada. Mas como a Delta é uma sociedade anônima, terá que sair da casca algum dia.

No balanço de 2005, com a dívida federal pendente, a empresa fechou as contas com prejuízo (acumulado desde exercícios anteriores), com capital líquido negativo e endividamento crescente. Ou seja: tecnicamente, em estado pré-falimentar.

******

Jornalista, editor do Jornal Pessoal, Belém (PA)