Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A cegueira do semanário

Em dezoito páginas de reportagem de capa, a revista Veja comete talvez uma das maiores injustiças de que se tem notícia relativamente a um personagem de destaque da República Federativa do Brasil. O assunto, como não poderia deixar de ser, trata do histórico julgamento do Supremo Tribunal Federal, que acolheu denúncia do procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza, relatada pelo ministro Joaquim Barbosa, transformando 40 mensaleiros em réus que, de agora em diante, enfrentarão inquéritos, cujo desfecho, segundo os analistas jurídicos, não se dará antes de três anos. Ou seja, o julgamento, provavelmente, desembocará na sucessão presidencial, em 2010, com chances de embaraçar o processo sucessório, como destacou o repórter Ricardo Callado, no Jornal da Comunidade.

Onde está a injustiça? Vamos por partes. A reportagem se divide em cinco matérias: a primeira, ‘O Brasil nunca teve um ministro como ele’, de seis páginas, escrita por André Petry; a segunda, ‘Ninguém escapou’, com quatro páginas; e a terceira, de duas páginas, ‘Como votaram os ministros’, conta com infográgicos detalhados, competentemente; a quarta, ‘Em busca da autonomia’, relato editorializado sem assinatura, dá uma geral histórica sobre o Supremo Tribunal Federal; a quinta, ‘Instituição é riqueza’, de duas páginas, do repórter Marcio Aith, destaca a importância da instituição jurídica como formação da personalidade de uma nação em termos de credibilidade; e a sexta matéria, ‘A nebulosa de José Dirceu’, de duas páginas, assinada por Heloisa Joly e Victor De Martino, faz um apanhado das tramas aprontadas pelo ex-ministro da Casa Civil do governo Lula.

Peça monumental

A injustiça foi praticada, principalmente, pelo repórter André Petry. Quando se acaba de ler as seis páginas que escreve, tem-se a impressão de que o trabalho realizado pelo relator, ministro Joaquim Barbosa, representou tarefa desempenhada por um Robinson Crusoe. Diria Marx, tratou-se de uma robinsonada. O ministro teria nascido numa ilha isolada dos confins do mundo e do nada elaborou um relatório de 430 páginas. Pegou aquilo em arquivo digital e rapou para a casa de amigos em Mariahilfer Strasse, em Viena, Áustria, para elaborar, ao som de música clássica, seu voto longe do murmurinho de Brasília.

Quem, no entanto, teria preparado 11.200 páginas e 140 apensos sobre os quais, mediante duríssimo trabalho, altamente elogiado, o ministro Barbosa se debruçou para extrair seu competente relatório, apreciado e aprovado, ao final, por 112 votações, entre as quais 96 delas por unanimidade dos ministros do Supremo Tribunal Federal, depois de ouvirem 29 advogados representarem seus 41 clientes mensaleiros?

Quem teria, inicialmente, realizado o tremendo esforço de compor uma monumental peça jurídica em torno da qual suas excelências trabalharam, merecendo, ao final do julgamento, que durou cinco dias, as seguintes palavras da ministra Ellen Gracie, presidente do Supremo: ‘Tenho dificuldade de crer que alguma corte no mundo se reúna em plenária num caso tão complexo e debata com tamanha minúcia, como fizemos’?

Desfecho feliz

Claro, o esforço de relacionar as provas, confrontá-las, dar-lhes encadeamento lógico e compô-las em um todo coerente, capaz de levar ministros a darem seu voto com consciência em face do trabalho realizado, foi do procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza. O ministro Ricardo Lewandowisk, em e-mails trocados com a ministra Cármen Silva, clicados pelo repórter fotográfico, Roberto Stuckert, do Globo, chegou a destacar que o trabalho do PGR impressiona. O mesmo disseram seus colegas, no decorrer da discussão do assunto e do anúncio de seus respectivos votos.

Mas, onde ficou o PGR na matéria de Petry? Em nenhum momento, ele cita nominalmente Antônio Fernando de Souza. Apenas no nono parágrafo – de onze, no total, todos longos – da matéria, explica que o ministro Joaquim Barbosa ‘subverteu a ordem da denúncia preparada pelo procurador-geral da República’. Não diz quem é o procurador-geral. Leitores e leitoras da revista ficaram sem saber o nome do personagem, tão importante quanto o relator. Afinal, foi Antônio Fernando de Souza que, na denúncia que preparou, durante quase dois anos, envolveu nela, com coragem e determinação, o que o próprio Petry destaca: ‘Dois poderes da República, cinco legendas, três ex-ministros e toda a antiga cúpula do partido do presidente’, demonstrando ser o mensalão o mais amplo esquema de corrupção desvendado numa democracia ocidental. Seria até o caso de perguntar: se fosse o procurador-geral não Antônio Fernando, mas Joaquim Barbosa, teria tido este a mesma ousadia daquele? Pode ser que sim, mas também que não, quem sabe?

No esforço laudatório de jogar, bem jogados, confetes em cima de Barbosa, que, sem dúvida, merece todos os elogios possíveis, Petry ignorou completamente o procurador, cujo trabalho, se não fosse feito com competência brilhante, de modo a impressionar seus pares juristas, talvez não tivesse alcançado o sucesso que merecidamente alcançou. Recebeu de bandeja o passe magistral, que lhe permitiu marcar gol de placa. Para o procurador aposentado, Roberto Schiarato, não fosse a dobradinha Antônio Fernando de Souza-Joaquim Barbosa poderia não ter havido o desfecho feliz que a sociedade aplaudiu entusiasticamente.

Mérito excepcional

Pelé, por acaso, teria marcado aquele gol espetacular contra a Tchecoslováquia, na Copa de 70, se não tivesse recebido aquela tremenda assistência de um passe de quase 70 metros de Gerson, um dos lances mais sensacionais do futebol? Ou teria o Rei batido o escanteio e corrido para cabecear e marcar?

O craque Antônio Fernando de Souza tem seu nome grafado na matéria da Veja apenas na ilustração suplementar dos infográficos, que mostram, didaticamente, o sobe-e-desce da trajetória do mensalão, quando, em 30 de março de 2006, oferece ao STF denúncia à justiça contra os integrantes da quadrilha, cujo chefe, concluíram os ministros, foi José Dirceu. Nas demais matérias, constantes da ampla reportagem, também nada de citações sobre essa eminente figura que, pelo menos para a Veja, se mostrou inexistente e, portanto, insignificante, mesmo sabendo que das 11,2 mil páginas que preparou, para denunciar os mensaleiros, 430 resultaram no relatório de Barbosa.

Como um bom editor, Barbosa, entre outros competentes encaminhamentos jurídicos, colocou no topo o lead do assunto, que, na peça preparada por Antônio Fernando, compunha o quinto capítulo. Mostrou o relator, de saída, para impressionar a platéia, a fonte do dinheiro que abasteceu o valerioduto. Deu, assim, o tom do julgamento, subvertendo, inteligentemente, a técnica da Procuradoria-Geral da República, que, como acontece com o trabalho dos advogados em geral, é a de começar tudo pelo começo, esmiuçando, até chegar à composição final. No entanto, o relator não conseguiria uma boa edição se a matéria do procurador não tivesse mérito excepcional. A Veja não o viu ou o escondeu, propositadamente?

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Jornalista, Brasília, DF