‘A nossa independência ainda não foi proclamada’ (Oswald de Andrade, Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928)
Em 7 de julho de 2009, Michael Jackson, astro do pop, foi sepultado em rede mundial. Segundo a Folha de S.Paulo, portais eletrônicos especulavam se o evento ‘derrubaria’ a internet, conforme ocorrido no dia da morte do cantor, quando o site de buscas Google registrara indisponibilidade no acesso a internautas. No mesmo dia, em matéria da própria Folha, a página do jornal Daily News atingia o número de 21,3 milhões de acessos na cobertura dos desdobramentos desde o chamado para a emergência médica no Rancho Neverland, de propriedade do artista, até a divulgação precisa da hora de seu falecimento.
Aqui no Brasil a cobertura foi extensa: jornais impressos, rádios, sites de notícias, canais de televisão e demais representantes da grande mídia divulgaram notas sucessivamente, buscando cobrir o que parece ser o maior evento mundial do ano, contrastando com a divulgação do resultado das eleições norte-americanas no fim do ano passado e firmando seus propósitos na busca desenfreada de mais informações pelo público.
Ao que se justifique informar a perda de um dos maiores símbolos da música intitulada ‘popular’ mundial em seus quase cinqüenta anos de carreira e de contraditórias atitudes, sempre sob os holofotes da mídia, salta aos olhos o confronto entre os produtos da indústria de entretenimento avidamente absorvidos em bits e pixel sites afora e o quase total desconhecimento do universo brasileiro frente ao que realmente suscitaria a alcunha de ‘pop’, feito pelo povo, no caso o nosso.
‘Eu organizo o movimento, eu oriento o carnaval’ (Caetano Veloso, Tropicália)
Já em 1928, o manifesto antropofágico de Oswald de Andrade, mesmo germinado nos mais privilegiados berços da elite paulistana, conclamava a produção de cultura de viés próprio, original, reconhecendo a influência direta das vertentes externas, mas conclamando a uma tomada de consciência sobre o processo de absorção de conhecimento. Para isso devorar, pregava, o que de bom lhe aprouvesse, regurgitando novas formas de expressão e percepção de si e da realidade. Hoje, afora as aulas de literatura e linguagem, antropófagos e seguidores dormitam perenes no esquecimento nacional.
Mais tarde, na década de 60, as águas da música popular desaguariam nos trópicos, sob o leme de Caetano Veloso, Gilberto Gil e os Mutantes, resgatando em suas embarcações os canibais paulistas, trazendo as cores da experimentação estética e cultural.
Sem renegar a guitarra do rock, os tropicalistas propunham um tempero nacional: a miscigenação de regionalismos e elementos internos, como o forró e o folclore, ‘girando na roda-gigante’ de ritmos nossos e compondo uma palheta de infinitas possibilidades.Era a transformação do espectador em agente pelo reconhecimento da própria identidade brasileira, sincrética e plural, tecida nos fios da renda nordestina, com o tingimento de séculos de colonização européia e, por que não, indígena e africana. Como diria Caetano, ‘não entendemos nada’. A vanguarda tornou-se dialeto para pequenos grupos de discussões teóricas, rompendo com a base popular e generalista. Virou item de enciclopédia.
‘Quem segura o porta-estandarte, tem a arte, tem a arte’ (Nação Zumbi, Maracatu atômico)
Se de todo desprezados os manifestos e os projetos de construção de um discurso nacional, apoiado na produção cultural do Oiapoque ao Chuí, foi na lama, mais precisamente no Mangue, que os antropófagos retornaram à vida. Em 1994 era divulgado o manifesto ‘Caranguejos com cérebro’, precursor do mangue beat, analogia ao ecossistema dos mais ricos do planeta e que gerou nomes como Chico Science e nação Zumbi.
Sob o estandarte da ‘parabólica na lama’, os mangue boys buscavam inundar as artérias de Pernambuco e do mundo com a expressão da mais pura música popular brasileira, em ritmos como o maracatu, o frevo e o carimbó, germinada sob as influências do contexto geral, mas sim, com consciência e método, costurando em retalhos culturas diferenciadas, mas de igual e reconhecida importância: nós, os caranguejos tupiniquins, e eles, resto do mundo.
Se portadores de uma mensagem de construção comum, os habitantes do mangue não conseguiram acessar as grandes artérias da cultura nacional, destinada tão somente a absorver o fácil, rápido e breve. Permaneceram em guetos, como seus antecessores da tropicália, enquanto a metrópole se tornava a babel midiática em que todos se entendiam porque na verdade não havia nada a dizer.
Caranguejos continuam na lama
Hoje, a cena cultural curva-se ante o cenário cibernético. Rompendo fronteiras, deitando por terra legislações de proteção ao conteúdo intelectual e firmando um novo pacto entre público e artista, a internet é o grande agente catalisador dos movimentos artísticos interativos que o escritor Ferreira Gullar, autor do manifesto neoconcretista de 1959 e uma das influências do tropicalismo, chamaria de ‘não objeto’, ou seja, a construção do sentido e da própria existência do objeto artístico ocorre no contato, no processo entre emissor e receptor, exigindo a ação deste último na produção de conteúdo relevante.
Mais do que espaço onde dizer, é preciso ter o que dizer, reconhecendo no fenômeno da globalização tão unicamente o propósito de estabelecer diálogos entre culturas e reafirmando o contexto da comunicação como o evento de construção de sentido entre partes que se posicionam como agentes. Mais do que um discurso amplamente divulgado, é necessário que se ergam inúmeras vozes e que sejam como tais reconhecidas: plurais, complementares, legítimas, brasileiras.
Resta aos herdeiros dos canibais tupiniquins escolherem se, na selva pixelizada dos dias atuais, se optará pela caminhada pelo espaço infinito de expressões humanas onde figure em igualdade de condições a nossa, ou se iremos em carreata acompanhar o funeral em carruagem do cantor americano como zumbis pertencentes a túmulos da nossa própria consciência, na referência ao mais famoso videoclipe do artista, este sim, amplamente divulgado pelos meios de comunicação.Os caranguejos continuam a chafurdar na lama, ao sol do nordeste, esperando pelo dia em que, trazidos à tona, passem a existir para o público em geral.
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Estudante de Jornalismo, Rio de Janeiro, RJ