Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A cena do crime

As matérias da SkyNews e BBC sobre os conflitos campais de Londres enfatizaram a expressão “cena do crime”, em uma tentativa equivocada de dar manutenção ao moral. Um comentarista chegou a dizer que a polícia investigará centímetro a centímetro a “cena do crime”, enquanto era exibido o filme clássico dos policiais caminhando lado a lado sobre – abre o enquadramento – dessa vez, pasmem!, uma rua fumegante e salpicada de destroços. Estavam em busca das “evidências”.

É possível imaginar o frenesi, a emoção que levou os jornalistas e comentaristas ao comportamento linguístico improvável. Mas também é possível supor a existência de uma orientação editorial: nesta manhã, a palavra de ordem é “cena do crime”. Então é isso, vamos mencionar várias vezes a expressão “cena do crime”. Mais verossímil terem ocorrido as duas coisas: o frenesi e a orientação editorial.

Não é preciso ser um especialista inglês em linguística para entender que uma batalha campal não produz “cena do crime” porque, caso contrário, poderíamos dizer: aterrissei na cena do crime ao chegar no Rio de Janeiro. É possível que os mesmos comentaristas e jornalistas da BBC e da SkyNews acreditem que todo o Rio de Janeiro é uma cena do crime, ou mesmo que todo o Brasil o seja: com exceção das matas virgens, onde evidentemente habitam Adão e Eva.

Talvez um jurista italiano ensine que a representação prototípica do criminoso é a do homem sob o capote, num lugar ermo, acercando-se da vítima, entre quatro paredes, silencioso, oculto, privado. Mas não é preciso ser um jurista italiano para entender que uma batalha campal não satisfaz as características prototípicas do comportamento criminoso, não produzindo, portanto e propriamente, uma cena do crime. Os dramaturgos podem ajudar. A cena possui foco, a cena possui personagens bem definidos, a cena possui falas – e, cuidado, não as sobreponha, senão a plateia quadrada não entende nada. Em Londres, seria melhor dizer a “ópera do crime”, a “apoteose do crime” ou, não querendo fazer piada, apenas não dizer nada.

***

[Rodrigo Panchiniak Fernandes é filósofo e linguista, Florianópolis, SC]