Onde começa a imagem da atriz Deborah Secco e onde termina a figura real de Bruna Surfistinha? Para mim não há dúvida, distingo a atriz da personagem. No entanto, tomo uma matéria publicada n’O Globo (23/2/2011) a propósito do lançamento nacional do filme Bruna Surfistinha, dirigido por Marcos Baldini. Estamos diante de um texto (ou contexto) que ilustra alguns dos impasses da ideologia da cultura contemporânea. É um texto sintomático. O que tem isto a ver com a fusão do público e do privado, com a superposição do centro e da periferia e com a questão do real e sua representação?
Tomemos o texto. Ele expõe uma ambiguidade textual e contextual. A rigor, a duplicidade Bruna/Deborah começou já numa outra ambigüidade anterior: Bruna/Raquel. Bruna é a personagem criada pelo jornalista Marcelo Duarte no livro O doce veneno do escorpião e Raquel Pacheco – a autêntica garota de programa que teve sua vida biografada. Aliás, biografada ou romanceada? (Os que se interessarem por isto academicamente, podem desdobrar aqui o item biografia/ficção – um dos tópicos preferidos da pós-modernidade).
Concentremo-nos na ambigüidade Deborah/Bruna tal como vem estampada no texto jornalístico. Esta duplicidade é um típico exemplo daquilo que Freud ao falar de mecanismos de nosso inconsciente chamava de ‘condensação’ e ‘deslocamento’, e os linguistas, posteriormente, a partir de Roman Jakobson denominaram de ‘metáfora’ e ‘metonímia’. Resumindo: pela condensação fundimos Bruna e Deborah numa só pessoa e pelo deslocamento falamos de uma no lugar da outra. Os dois movimentos são complementares, às vezes a condensação (metáfora) é dominante, às vezes o deslocamento (metonímia) é o que predomina.
Esses mecanismos existem não só nos sonhos, nas artes, mas nas representações sociais. A publicidade recorre a isto constantemente. Ao botar, por exemplo, uma linda mulher ao lado de um automóvel está procedendo primeiro a uma condensação (o automóvel tem os atributos da mulher irresistível) e depois a um deslocamento (eu compro o carro, investido do desejo anunciado). Ou seja, uma imagem contamina a outra.
As verdadeiras
Voltemos ao nosso caso exemplar: o jornal traz uma foto de Deborah Secco, lindíssima, em roupa de gala na estréia do filme Bruna Surfistinha (no Cine Odeon, Rio) sendo cumprimentada por umas cinco moças. A foto representa uma realidade, o lançamento do filme. No entanto, embaixo da foto a legenda faz uma condensação: ‘Bruna e as companheiras de michê’. Estabelece-se a ambigüidade. A foto é de Deborah. Mas reparem, o texto não diz Deborah, mas Bruna. E pode-se pensar ambiguamente, que aquelas não são as atrizes (companheiras de Deborah), mas as companheiras de Bruna, a prostituta.
Por outro lado o titulo da matéria é igualmente ambígua: ‘Bruna Surfistinha tira a maior onda’. De qual Bruna Surfistinha se trata? De Deborah a atriz presente na estréia da peça ou de Bruna propriamente dita, ausente fisicamente, mas presente simbolicamente?
A ambigüidade continua. Noutra parte, descrevendo as pessoas e as cenas na estréia do filme, o jornal formaliza a dubiedade escrevendo os nomes de Deborah e de Bruna separados por uma barra: ‘Deborah/Bruna(…)está ao lado da mãe. Dona Silvia assiste a tudo impassível’. Ambigüidade de novo: se Deborah é Bruna, pode-se ficar na dúvida se Dona Silvia é mãe de Deborah ou Bruna.
A matéria continua expondo a ambigüidade. Dentro e fora da tela, dentro e fora do teatro. No filme, uma personagem, encenada pela atriz Drica Moraes, diz: ‘Tá cheio de mulher bonita gostosa e universitária querendo trabalhar’. Bem, neste caso é outra atriz representando outra personagem, que faz essa afirmativa que define algo da sociedade atual. Segundo essa afirmativa, Bruna ou melhor, Raquel, é uma figura exemplar, pois exemplificaria um desejo de moças de classe média hoje.
A realidade e a ficção voltam a se misturar, agora de outra forma. Há outra vez uma mistura entre ficção e realidade: não é mais a personagem que Drica Moraes representa, mas outra pessoa concreta, uma atriz, Giulia Gam, na platéia do filme e não na tela, declarando: ‘Ah, toda mulher tem o fetiche de ser prostituta por um dia, nem que seja para o namorado’. (É uma afirmação categórica à qual outras mulheres poderiam responder com mais propriedade.)
No entanto, face a essa afirmativa, a própria Deborah saindo da pele da Bruna, deixando o espaço de identificação e condensação, sentindo-se inconfortável diante dessa declaração tem a seguinte reação assim narrada pelo jornal: ‘Deborah pode até concordar, mas ficou ruborizada e disse que era ‘puramente artístico’ o seu interesse em viver uma prostituta’.
Com efeito, a atriz havia declarado que preparando-se para o filme fez workshop, indo conversar com prostitutas verdadeiras para conhecer melhor a realidade delas. E confessou também que o papel era para ela uma possibilidade (artística), como se diz hoje, de desconstruir-se.
Empenho realista
Porém, voltemos à cena narrada pelo jornal. A condensação das duas imagens com o eventual deslocamento continua. Dou um exemplo: ali no Cine Odeon (diz o jornal) está uma ex-integrante do Big Brother – programa que para alguns é o espaço da permissividade e da prostituição chique. Cida Moreira, que saiu da tela do Big Brother para a tela de outra emissora em que agora trabalha (nova condensação/deslocamento entre ficção e realidade), acena para a atriz do filme e recebe um beijo de volta da Deborah/Bruna.
Consideremos, nessas alturas, contrastivamente, outros fatos artísticos que giram em torno da temática da prostituição. Remeto o leitor interessado ao livro O canibalismo amoroso (Editora Rocco) onde estudo a imagem da ‘prostituta sagrada’ e o fenômeno da ‘hierogamia’ seja entre os babilônios seja na tradição cristã com duas Marias: a mãe de Jesus e Maria Madalena. Contudo, embora em nossa tradição exista um farto material que inclui A dama das camélias/ A Traviata os romances de Jorge Amado ou a filmes como Uma linda mulher ( Julia Roberts) consideremos, dentro dos estreitos limites deste ensaio, a peça Navalha na carne de Plínio Marcos que teve, em 1968, Tônia Carreiro no papel de prostituta.
Quando Tônia representou a prostituta, por mais realista que fossem o texto e a cena, nem por isto sua imagem na imprensa e na ideologia da época foi confundida com a da personagem. A imprensa e o público sabiam que aquilo era ‘representação’. A ambiguidade era zero. As coisas ocorriam no nível do simbólico, da representação. Evidentemente Tônia estava encarnando uma personagem, enquanto Deborah está encarnando uma pessoa viva, transformada pela mídia em personagem. Mas, estratégica e sintomaticamente, as entrevistas com Bruna/Raquel/Deborah que estão sendo feitas para o lançamento do filme reforçam ainda mais a condensação e o deslocamento.
E surge um outro fato para fértil análise.
Coincidentemente, nesses dias, A navalha na carne está sendo encenada no Hotel Paris, na Praça Tiradentes, no quarto de uma prostituta. O teatro contemporâneo (como a arte oficial de nosso tempo) tem trabalhado com essa experimentação. Não há mais fora e dentro, rascunho e texto definitivo, certo e errado, teatro e outras artes, platéia e palco, autoria e apropriação. Não há mais limites, trabalha-se sobre a indiferenciação ética e estética.
No caso da encenação no prostíbulo do Hotel Paris, o papel principal está com a atriz Marta Paret e o espetáculo é dirigido por Rubens Carmelo. É um empenho realista, digamos total, dentro de uma tendência do teatro atual de abolir o limite entre o espaço imaginário e o real, reforçando os mecanismos de condensação e deslocamento.
A diferença
Houve, portanto, um tempo em que era mais nítida a diferença entre a representação e o representado ou, então, isto era uma estratégia claramente delimitada. Um ator representando um assassino não era necessariamente tido como um assassino, quem representava um louco não era necessariamente um louco e assim por diante. Liam-se o texto e o contexto diferentemente.
Mas a cultura contemporânea propõe, em certas obras, uma coisa intrigante e de alto risco, conquanto às vezes muito criativa: abole-se a fronteira entre a realidade e ficção, o real invade o lugar do simbólico, como se a realidade (in presentia) fosse mais forte que a imaginação (in ausentia). A ordem é apresentar o real ao invés de representar ou de reapresentá-lo. Com isto o símbolo passa ser substituído pela realidade.
Seria isto um empobrecimento, um beco sem saída? Qual a diferença entre mergulhar jubilosamente no ‘mal estar da civilização’ e, diferentemente, analisar isto enquanto sintoma? O que é que a tal ambiguidade, a quebra de fronteiras e limites têm a ver com o que Gregory Batteson chamava de double bind, ou seja, o discurso duplo de uma sociedade esquizofrênica que emite ordens contraditórias?
Onde começa a desrepressão pessoal e social e onde começa a anomia? De que modo, o fato de abolir as ‘diferenças’, além de redefinir papéis nos joga no indiferenciado?
Nesses dias, também no jornal, li uma matéria sobre este mesmo assunto, mas era algo ‘diferente’, ‘diferenciado’. Desta vez a personagem real era Gabriela Leite, notória líder das prostitutas e ex-prostitutas brasileiras . Estava ela acompanhada de duas líderes de prostitutas alemãs que foram com ela visitar o cemitério das ‘polacas’, ou seja, as prostitutas enterradas no século passado no cemitério dos judeus no Rio. Denunciavam assim o trabalho a que eram submetidas as escravas sexuais, desta vez sem nenhuma glamourização. E havia diferença. A condensação foi para o segundo plano. Operou-se um deslocamento crítico.
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Jornalista e poeta; seu site