Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A confissão de culpa do senador

Imortal, talvez. Infalível, certamente não. Fisgado em grampo da Polícia Federal em conversa com seu filho, Fernando Sarney, o senador do Amapá – ou o quarto senador do Maranhão – confessa o óbvio não assumido: as emissoras de televisão e rádio, bem como os jornais e todo e qualquer veículo de comunicação, servem de batalhão de elite na guerra política.


‘Vamos botar isso na TV.’ Sintético, o presidente do Senado se refere a uma denúncia de corrupção contra Aderson Lago, tucano que comanda, de fato, o governo do Maranhão. Aderson, primo do governador Jackson Lago, quando deputado estadual destacou-se pela oposição ferrenha ao sarneísmo durante os dois mandatos da governadora Roseana Sarney (1995-1998 e 1999-2002). Vale o registro, porém, que o mesmo Aderson Lago já teve abrigo cativo na família real do Maranhão.


Entretanto, o que nos interessa aqui, mais do que os elementos e o mérito da disputa, é a confissão explícita de José Sarney revelando o uso político de uma concessão pública (ver, neste Observatório, ‘Sobre lagartixas e dinossauros‘).


Falsidade ideológica


A Constituição, no seu artigo 54, é inequívoca quanto à proibição de parlamentares serem concessionários de rádio e TV:




‘Os Deputados e Senadores não poderão:


I – desde a expedição do diploma:


a) firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes;


[…]


II – desde a posse:


a) ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou ela exercer função remunerada.’


A essa vedação objetiva, somam-se os princípios gerais da administração pública, listados no artigo 37 da Carta Magna:




‘A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (…)’.


E tanto a Constituição quanto o Código Brasileiro de Telecomunicações determinam a subordinação das emissoras de rádio e TV às finalidades – educativas, artísticas, culturais e informativas – que atendam ao interesse público da sociedade brasileira.


Ao confessar, incauto, a conduta em que se vale de uma concessão do Estado para obter favorecimento político de caráter pessoal, o ex-presidente da República e dirigente máximo da instituição que elabora as leis do país reforça a constatação de que o Estado não é neutro e tampouco a Justiça é cega.


A família Sarney, embora destronada do governo estadual após quatro décadas de domínio, controla não apenas os principais meios de comunicação do estado mais indigente do país. O Judiciário maranhense, por exemplo, está profundamente atado às redes de relações de poder tecidas desde que José Sarney derrotou a oligarquia comandada por Vitorino Freire, em 1965.


Jamais a hegemonia do clã Sarney esteve tão ameaçada quanto no momento atual. Derrotado nas urnas na eleição de 2006 e praticamente varrido das principais cidades maranhenses em 2008, tem os negócios investigados a fundo pela PF e pelo Ministério Público Federal (MPF). Fernando Sarney é acusado de crimes contra o sistema financeiro, formação de quadrilha, falsidade ideológica, fraude em licitação, lavagem de dinheiro e evasão de divisas, entre outros delitos, e teve prisão preventiva solicitada pelo MPF.


Sinônimo do atraso


Atacado duramente até por publicações conservadoras, como as revistas The Economist e Veja (por intermédio de um colega de partido, o senador Jarbas Vasconcelos) e denunciado pela Folha de S. Paulo, veículo no qual assina coluna semanal, o patriarca Sarney pode ter na direção do Senado menos uma prova de força do que um derradeiro e incerto respiro. A conferir.


Na lista histórica de confissões desse tipo, não esqueçamos o que disse o nosso sumo magnata da mídia. Em 1987, The New York Times publicou entrevista com Roberto Marinho, tão reveladora do seu pensamento quanto pouco conhecida do grande público:




‘Sim, eu uso o poder [da Rede Globo], mas eu sempre faço isso patrioticamente, tentando corrigir as coisas (…). Nós gostaríamos de ter poder para consertar tudo o que não funciona no Brasil. Nós dedicamos todo o nosso poder para isso. Se o poder é usado para desarticular um país, para destruir seus costumes, então, isso não é bom. Mas se é usado para melhorar as coisas, como nós fazemos, isso é bom.’ (Citado em Mídia: Teoria Política, de Venício A. de Lima, Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.)


Em 2005, como lembra o professor Venício Lima em artigo no Observatório da Imprensa (‘Por que o CCS não será reinstalado‘), Sarney cunhou uma máxima que resume a relação entre políticos e mídia no Brasil: ‘Se não fossemos políticos, não teríamos necessidade de ter meios de comunicação’ – registrado em CartaCapital (nº 369, de 23/11/2005).


Na conversa flagrada pela PF, divulgada semanas atrás, Sarney economizou nas palavras, mas não deixou dúvidas quanto a uma das finalidades da sua emissora de televisão.


Diante de tal declaração de culpa, o mínimo que se pode esperar das autoridades é a cassação da concessão da TV Mirante (anagrama de mentira), afiliada da Rede Globo.


Como bem apontou The Economist, Sarney representa o mais autêntico dinossauro político do país. É sinônimo do atraso e do fisiologismo. A renúncia do posto recém-assumido no Senado seria a conseqüência esperada, desejada e, ademais, lógica, embora, na política, esse termo não tenha muito sentido.

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Jornalista formado pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social