O que aconteceu realmente em Cuiabá na violenta sexta-feira dia 24 de fevereiro, durante manifestação do Comitê de Luta pelo Transporte Público (CLTP) pelo fim da restrição de empresas de ônibus ao passe livre e pela redução da tarifa, pouco foi divulgado. Ressalva para os textos e as fotos do Diário de Cuiabá de sábado (25/2). Abaixo, então, um relato de quem estava lá e sentiu um pouco do que é capaz uma prefeitura que tão bem sabe pôr a mídia debaixo de seu braço.
Ainda mais tendo como Secretário de Comunicação o respeitado Pedro Pinto, professor universitário do curso de Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso, ex-secretário de Estado de Comunicação (citado como um dos envolvidos no caso Secomgate; episódio de favorecimento de dinheiro público da Secom estadual ao grupo Gazeta de Comunicação, o maior de Mato Grosso, denunciado em 1998). Pedro Pinto também participou do ‘comitê da maldade’ do PSDB na campanha a prefeito em 2004, no qual sua função era a de produzir propagandas apócrifas que agredissem pessoalmente os adversários.
Covardia. Muita covardia. Creio serem esses os termos capazes de minimamente descrever o que ocorreu em frente à SMTU (Superintendência Municipal de Trânsito e Transportes Urbanos de Cuiabá), situada na Rua 13 de junho, na sexta-feira. O relato é longo, mas se faz necessário contar o que de fato ocorreu. Dezenas de estudantes e trabalhadores, incluindo representantes do MST, foram brutalmente agredidos por militares da tropa de choque (Rotam) por tentarem entrar na sede da SMTU – um prédio público – a fim de fazer um ato público no momento em que o novo secretário de Transportes, Oscar Soares, estava sendo empossado pelo prefeito de Cuiabá, Wilson Santos (PSDB). Saiu Emanuel Pinheiro.
Sessão de pancadaria
Como não nos foi permitida a entrada pela frente do prédio público, tentamos – e conseguimos adentrar – pela garagem, nos fundos. Mas lá ficamos encurralados numa rampa e demos de cara com mais uma porta, de ferro. Logo os convencionais PMs deram espaço e vez para o trabalho de militares violentos e despreparados da Rotam. Não passava das 11h30. Entre uma e outra negociação com interlocutores da prefeitura para presenciar a cerimônia de posse de Soares, anunciado como o secretário do aumento da tarifa, os militares cutucavam os manifestantes com a tonfa, não importando que fosse homem ou mulher. As luzes foram apagadas por diversas vezes também, por eles. Só não apanhamos nesses momentos porque registrava toda a situação o fotógrafo do Diário de Cuiabá, Maurício Barbant.
As negociações foram encerradas sem sucesso, pois o prefeito e o novo secretário agiram de forma intransigente, primeiro negando a entrada do conjunto de manifestantes e depois se recusando a ouvir a pauta de reivindicações perante os estudantes e trabalhadores que estavam na rampa dos fundos.
Em seguida, para dispersar os manifestantes, a tropa de choque jogou gás de pimenta no chão. Rapazes e garotas desceram desesperados em direção à porta da garagem. A cena era cruel. Pessoas engasgadas, tossindo, cuspindo, xingando de raiva o prefeito Wilson Santos pelo tratamento e os militares que estavam à frente, ‘tentando controlar a situação’ (e que esta última parte da frase seja bem entre aspas mesmo!).
E não fossem os militantes do CLTP segurarem a porta da garagem, os militares já a teriam fechado para que se iniciasse a sessão de pancadaria. Seria mais covarde ainda. Durante todo esse tempo a maior parte dos meios de comunicação se fazia presente. Vários jornalistas estavam na cerimônia de posse.
Culpada, segundo a TV
Mas a pancadaria ocorreu fora da SMTU, em frente ao prédio, na rua 13 de Junho, que já estava interditada há vários minutos. E tudo ficou mais quente quando a Rotam algemou um menor de idade e tentou pô-lo dentro do camburão, alegando que ele supostamente havia dado um chute num veículo, dentro da garagem. Como se um menino lutando por suas convicções, acuado por gás de pimenta, cassetete e escopeta não tivesse o direito de se debater contra o que visse pela frente no desespero de fugir.
Pois os truculentos tentaram pôr o rapaz a todo custo dentro do camburão. E nós, armados de gritos, indignação e com a única tática de cercar o veículo para que o menino permanecesse conosco, fomos novamente atacados com spray de pimenta nos braços, nas pernas e na cara. Ainda houve quem ficasse sentado, deitado em frente à viatura por alguns segundos. Levaram o estudante e em seguida partiram para cima da professora Andreza Moraes, que havia acabado de chegar ao local e que, como todos, estava escandalizada com a atitude da tropa de choque. Aliás, não havia necessidade alguma da presença da tropa de choque ali.
Mal começou a desferir algumas qualificações em alto e bom som aos militares e logo a professora foi puxada pelos braços, levou rasteira, sofreu golpes de cassetete, foi imobilizada e jogada na viatura. Tentamos cercar o carro novamente, contudo houve distribuição de cacetadas e spray de pimenta na cara. Já era meio-dia e meia. Por incrível que pareça a TV Centro América (afiliada da Globo) disse que a culpada era a professora, que havia ferido a lei. Pasmem! Mas veja as fotos de capa do Diário do dia 25/2.
No gatilho da Rotam
Concluídas essas duas cenas bastante representativas da incapacidade da prefeitura da capital em lidar com as reivindicações populares, o clima era de dor, desespero, raiva, muita raiva. Tantas foram as vezes que, ao microfone da Kombi do Sintep (sub-sede Cuiabá), militantes do CLTP e do MST chamaram Wilson Santos de fascista, de nazista, de filho da puta e de muitas coisas mais. As pessoas choravam de raiva ao microfone. Exigiam que o prefeito, que se autoproclama democrático, descesse imediatamente do prédio onde estava para explicar tamanha atrocidade.
É bom registrar que neste horário a cerimônia de posse já havia acabado. Wilson, assessorado pelo secretário de Comunicação, Pedro Pinto, pelo novo secretário de Transportes, entre outros, tentava descobrir uma forma de sair da violenta situação que havia criado. Afinal, ele sabia que lá embaixo estudantes e trabalhadores estavam ávidos por explicações e pelo retorno imediato dos companheiros de luta que haviam sido presos. Outros tantos tinham sido levados ao pronto-socorro e outros mais se deslocavam à delegacia para fazer BO e em seguida o exame de corpo e delito. Aos poucos, bem aos poucos, outros veículos de comunicação iam se achegando.
Pois que lá pelas 15h o prefeito desceu, e no seu estilo bem demagógico, populista, logo foi sentando na mureta da entrada da secretaria, na tentativa de acalmar os ânimos. Mas imediatamente foi obrigado a se levantar sob berros. Dezenas de pessoas o cercaram. Ao lado de Soares, Wilson Santos ouviu, ouviu, ouviu muito. Palavrões, reivindicações, desabafos. Ele tentou falar, em vão. Ouviu mais. Até que os manifestantes abriram espaço para que ele se justificasse. Como não convenceu, sofreu nova sessão de vaias, e por conta disto saiu da roda, rumo ao seu carro oficial. Entretanto, os manifestantes chamaram-no de covarde, de fujão e cercaram o carro. O gás de pimenta já estava mais uma vez no gatilho da Rotam, só que o prefeito, percebendo que a situação poderia ficar ainda pior, deu um sinal e os militares se afastaram.
Na luta
Wilson Santos foi posto na roda novamente, e desta vez, não podendo escapar, assumiu o compromisso de tentar liberar os dois manifestantes presos arbitrariamente. O prefeito subiu e nada resolveu. Diante disso os manifestantes dividiram-se em dois grupos para acompanhar o caso de cada colega. Isso não foi veiculado por qualquer TV nem mencionado por qualquer jornal. O menor foi liberado no fim da tarde. A professora, que ainda foi acusada injustamente de depredação de vidraça de viatura e teve de pagar fiança de R$ 300. O dinheiro foi levantado pelo Sintep (subsede Cuiabá), Sintep/MT e Cut.
No fim disso tudo, três certezas. Primeira: nada acabou; a luta contra o fim da restrição de linhas de ônibus do passe livre e principalmente pela redução da tarifa continua mais viva do que nunca. Segunda certeza: Wilson Santos é hoje em Cuiabá o maior símbolo de intransigência e violência oficial contra os movimentos sociais. Terceira: a maior parte da mídia também violenta os movimentos sociais.
E como boa parte da mídia não relatou nem relatará realmente o que ocorreu na sexta, dia 24, em frente a SMTU de Cuiabá, tanto por orientação ideológica e por linha editorial, quanto pelo motivo de não estar no local no momento das barbaridades, é preciso que os fatos reais sejam contados de forma detalhada e espalhados para o máximo de pessoas possível. Também é preciso que cada movimento social, cada parlamentar de luta, cada sindicato emita seu repúdio à violência oficial praticada pela PM e pela prefeitura de Cuiabá. A gente muda o mundo na luta do dia-a-dia.
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Jornalista e militante do Comitê de Luta pelo Transporte Público