O intelectual José Murilo de Carvalho tem um livro cujo título é Os Bestializados. Nesta obra, o historiador chama a atenção para um fato ocorrido na República brasileira. Segundo ele, a República foi efetivada sem levar em conta o princípio mais elementar em uma república. Nesta, a coisa pública é o povo. Este, durante o processo de construção da República brasileira, assistiu a tudo de forma bestializada. O Estado brasileiro encarou como coisa pública tão somente a instituição Estado e o capital. Os trabalhadores e a trabalhadoras, no Brasil, sempre foram vistos como criminosos e criminosas. O massacre de Canudos é um exemplo notório deste comportamento belicoso do Estado brasileiro. Se ali o Estado tivesse dialogado com aquele grupo de trabalhadores e trabalhadoras, não teríamos tido aquele massacre e certamente teríamos hoje, no Nordeste da Bahia, uma grande metrópole, amplamente desenvolvida.
Infelizmente, ainda hoje o comportamento belicoso da mídia e do Estado brasileiro persiste. Um dos últimos atos neste sentido é a recém-criminalização dos movimentos sociais do campo. Não é de agora que a mídia vem criminalizando o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra). Este movimento cometeu um ato que, à vista do cidadão desavisado, foi um ato de vandalismo. Houve, no interior de São Paulo, a ocupação de um latifúndio, pertencente à família Cutrale. O que ninguém da mídia procurou demonstrar neste caso particular – por omissão ou por ignorância – é que aquela terra foi comprada pelo governo brasileiro em 1909 para assentar estrangeiros no país. O assentamento não deu certo e, tempos depois, um grupo de espertalhões grilou aquela área, e a colocou nas mãos da família Cutrale sem custo algum para os atuais proprietários.
Quem quer manter a ordem?
Constata-se que aquelas terras nem devolutas são. São, sim, terras que foram compradas com o dinheiro do povo e expropriadas por aquela família. Por esta razão é que, os trabalhadores e trabalhadoras não invadiram aquelas terras, eles as ocuparam. Porque invadir é sinônimo de apropriação indevida daquilo que não é meu de direto e de fato. E, pelo meu entendimento, quem assim o fez foi a família Cutrale, e não os trabalhadores e trabalhadoras rurais. Estes ocuparam o que é de direito e de fato deles e delas. Neste sentido, ocupa-se, e não se invade. Aqui, a pessoa ocupa o que é seu, e foi isso que os trabalhadores e trabalhadoras fizeram no interior de São Paulo.
Mas a mídia e o Congresso brasileiro acharam bem melhor fazer o jogo da oligarquia que já provocou o massacre de Canudos, do que filosofar sobre o sentido pleno da palavra República. O contratualismo não se deu em sua semântica, aqui neste país que alguém disse que era nosso. Fica uma pergunta que também é feita por Nando Reis na música Desordem. Quem quer manter a ordem? Ou seja, a quem interessa manter uma ordem fundiária cuja terra está concentrada em 80% nas mãos de apenas 10% da população, restando 20% das terras para 90% da população?
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Filósofo e educador