‘Ontem, na rua 34, uma banca vendia bottons de Obama especificando que eles eram `Union Made in the USA´, ou seja, fabricados nos EUA por trabalhadores que pertencem ao sindicato.
Ao lado dessa banca, um vendedor de DVD colocava seus heróis numa mesma coluna: Obama, Martin Luther King, Lumumba, Fidel Castro, Gandhi e Che Guevara.
Depois dizem que Obama não é um cara de esquerda…
Esta é a última crônica de Nova York. Volto para São Paulo.’
Assim, o psico-articulista da Folha de S.Paulo encerra sua série de crônicas, escritas em Nova York, durante o período eleitoral que revolucionou a história política americana, trazendo à baila questões diversas que, num mix inusitado, movimentaram e ainda movimentarão por longo tempo a mídia internacional, com pautas que vão desde a discriminação racial até a crise econômica que se mostra crescente e astronômica, até os conceitos de democracia socialista em país dito rico, avançado e capaz de mudanças radicais, auto-referenciando seu próprio capitalismo em torno dos seus conteúdos consumistas, seja de bens materiais ou de modus vivendi exportáveis através do cinema ou de fatos com proporções universalmente difundidos, como foi o caso da queda das Torres Gêmeas.
Comportamento ressabiado
Ao se referir aos bottons vendidos na 34th Street, Calligaris aponta para um fato relevante da comunicação social que é o culto a olimpianos, heróis necessários ao significado do inconsciente coletivo em qualquer sociedade, moderna ou de priscas eras, que já foi tão bem estudado pelo francês Edgard Morin no seu livro Cultura de Massas no século XX. Esses personagens, ‘mesclados na mesma coluna’, nas palavras do cronista, na verdade, povoam o imaginário popular com grandes doses de efeito social, aferindo ‘projeção’ e ‘identificação’ aos comuns mortais que compõem as massas atingidas pela comunicação da cultura contemporânea.
Eu mesma, em outubro, adquiri alguns bottons do Obama e os distribuí para amigos brasileiros, quando voltei de lá, mas fiz questão de guardar um que considero antológico e me remete à minha adolescência de sonhadora com a igualdade entre brancos e negros. Nele, há os dois rostos, o de Obama e o de Martin Luther King, e uma frase expressiva: Change is what we need (‘Mudança é o que nós precisamos’).
Em torno da crônica do Calligaris, e das outras que a precederam, há uma aura de grande reflexão presente nas comunidades que compõem a sociedade norte-americana, composta de grande força de trabalho imigrante e de movimento intenso de capital internacional em sua economia. No plano sub-reptício, existe o que ele chama de ‘culpa branca’, vinda de uma ancestralidade que escravizou os africanos e lhes legou comportamento ressabiado, em função de fatos que não foram privilégio da sociedade norte-americana, mas que se repetiram em países como o Brasil e tantos outros que usaram a mão-de-obra escrava em período literalmente negro de suas histórias.
O discurso e o real
Calligaris diz: ‘É cedo para que Barack Obama seja objeto de gozação, mas pensei no comic strip ao ler comentários sobre a mudança que a eleição de Obama traria às relações entre brancos e negros.
As pesquisas qualitativas mostram que, para a grande maioria da população branca, a cor da pele de Obama não foi um critério relevante. Não por isso é o caso de decretar o fim do preconceito racial. Mas um componente do preconceito foi abalado: a culpa dos brancos, que foi, se não lavada, no mínimo seriamente aliviada pela eleição de terça-feira. Poucos dias antes da eleição, estive no comic strip. Note-se que, em regra, o humor nova-iorquino ridiculariza as diferenças que convivem na cidade: irlandeses, italianos, porto-riquenhos, mexicanos e hispânicos em geral, russos, judeus ortodoxos etc., todos passam por brutais caricaturas. Paradoxalmente, a minoria que é mais poupada é a afro-americana, como se, nesse caso, a piada corresse o risco de parecer racista. É o efeito da culpa branca.’
Dá para perceber que algo de novo acontece no reinado do Tio Sam, a tal mudança que precisamos já começa a mostrar seus efeitos, quando a sede de caricaturar diferenças se amaina e se refreia até em programas onde o cômico sempre se aliou ao sarcasmo zombeteiro. Outras mudanças vão se fazer sentir daqui para a frente entre eles e nós, que não escapamos ao sentido do conteúdo de uma comunicação reflexiva que provocará nos produtores de televisão, rádio, nos pauteiros e editores de jornais, uma nova postura quanto ao tratamento dado aos seus noticiários e informações.
Em programa na televisão carioca, por ocasião do Dia da Consciência Negra, assisti ao emérito professor Muniz Sodré, em preciosa intervenção, falar sobre a distância entre a teorização do discurso e o desafio da aproximação real entre as pessoas diferentes, com contatos de pele e de olhos, com superação de preconceitos além da razão, mas alinhados na emoção.
Rir ao mesmo tempo
Parece que os primeiros grandes passos nessa direção já foram dados. Se Obama é símbolo de mudanças nesse campo para que se possam dirimir diferenças entre seres humanos e eles possam obter melhor entendimento em seus negócios ou ações conjuntas, já é um avanço enorme, num mundo tão seccionado por disputas econômicas, religiosas ou raciais.
E registro um trecho do artigo citado, considerando que é um mote importantíssimo para que se reflita sobre a necessidade de mudarmos juntos e até podermos rir juntos, sem que nos sintamos culpados de séculos de opressão e injustiças. Neste parágrafo, Calligaris consegue resumir o sonho do melhor que o efeito Obama poderá infundir em mentes e corações de seu povo. Observem:
‘Exemplo. Um dos comediantes, naquela noite, brincou com `o atraso da risada branca´: quando ele (hispânico) faz uma piada sobre os negros, os brancos riem com dez segundos de atraso. Não é que não entendam, mas eles só se autorizam a rir após verificar que os negros na platéia estão mesmo achando engraçado e rindo. Quem sabe, depois de Obama, brancos e negros possam rir ao mesmo tempo.’
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Jornalista, Rio de Janeiro, RJ