‘Acordei triste’, escreveu no domingo, 16 de outubro, o cineasta Paulo Machline n’O Estado de S. Paulo (caderno Aliás, página J7), sobre o jogo-fantasma Santos 2 x 3 Corinthians do dia 13, a partida ‘que não deveria ter existido’, e sobre a terra sem lei que virou o futebol brasileiro. ‘Acordei triste’ é uma expressão simbólica e importante que expressa o sentimento de um cidadão que, como tantos, ama o esporte bretão. Ao se referir à tristeza, ele aponta para a decepção de milhões de pessoas que se envolvem na paixão pelo futebol, independentemente de classe social, escolaridade, cor ou religião. É como se dissesse: ‘Até isso estão nos castrando’. Machline não tece um apanhado de lamúrias de torcedor, mas faz uma série de questionamentos e levanta questões cujos esclarecimentos deveriam ser pauta da chamada mídia esportiva, mas infelizmente não são, salvo raras exceções.
A abordagem de cadernos esportivos, emissoras de rádio, TV e canais a cabo é construída com um discurso repleto de obviedades e clichês. Alienante. A TV Cultura, nos anos 70, criou um slogan para suas transmissões esportivas: ‘Esporte é Cultura’. Se era, não é mais. Mesmo nas ‘mesas-redondas’ aceitáveis e que têm ‘quadros’ mais sérios (que não existem nas TVs abertas, exceto o Cartão Verde da própria Cultura), privilegia-se apenas o espetáculo, algumas vezes o ufanismo barato, e nas entrelinhas essas ‘análises’ apontam para uma única verdade: o espetáculo deve continuar.
Fantasmas jurídicos
Mas há muito mais do que o espetáculo, cada vez mais parecido a um circo cujos palhaços são os torcedores (também consumidores, dizem que protegidos por lei) e até mesmo os clubes de futebol. No Brasil, diferentemente das instituições que, de modo geral, se democratizaram no pós-ditadura, o futebol é um ramo de atividades que continua acima (ou à margem) da lei, protegido por estranhas cumplicidades das quais a mídia, em muitos episódios, é íntima.
Antes de ser decretada pela canetada do presidente do bizarro Superior Tribunal de Justiça Desportiva, Luiz Zveiter, o superman super-15 do futebol, a anulação dos 11 jogos no campeonato brasileiro foi apontada pela esmagadora maioria dos jornalistas esportivos como a melhor solução, ou, eufemisticamente, a ‘menos pior’. Não se deu atenção às conseqüências objetivas (o inconformismo e a violência da massa de torcedores ludibriados) da decisão autocrática. Pelo contrário, a decisão de Zveiter teve o respaldo prévio e foi mesmo estimulada pelos próprios jornalistas ávidos por uma decisão rápida, limpa e cabal. Até Juca Kfouri e Antero Greco (duas das poucas vozes inteligentes e respeitáveis na crônica esportiva) ajudaram a consolidar a tese do ‘menos pior, melhor’ antes mesmo do ‘julgamento’ de Zveiter.
Do direito do cidadão que compra ingresso para ir ao estádio ou que paga TV a cabo, ou mesmo do direito difuso do torcedor que simplesmente ama o futebol que ouve no rádio e vê na TV aberta (duas concessões públicas, diga-se), falou-se de passagem, quase como uma necessidade formal. Esse direito é expresso no Estatuto do Torcedor, que é extensão do Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90), a legislação mais moderna sobre relações de consumo da América do Sul. Do direito dos clubes, também ninguém se lembra. Clubes e jogadores, verdadeiros agentes e responsáveis pelo espetáculo em si, são ignorados, como se não tivessem a proteção da Constituição, como se fossem fantasmas jurídicos.
Que justiça é essa?
Uma pérola do clichê e da obviedade conformista é de José Geraldo Couto, que em sua coluna da Folha de S. Paulo do dia 14 faz coro ao simplismo oficialesco. Referindo-se à atitude do jogador Giovanni, do Santos, que, sendo homem, e não máquina, chutou a bola longe quando viu que a vitória no jogo-fantasma do dia 13 seria do Corinthians, como aliás era de se esperar, Couto escreveu que o ato do meia santista teve um ‘toque’ de ‘ódio e irresponsabilidade’. Ok, a culpa é do Giovanni.
Antes da anulação dos jogos, o sempre correto Paulo Vinícius Coelho, por exemplo, no bom programa Linha de Passe, da ESPN Brasil, não deixou dúvidas sobre sua fé na anulação sumária, sem direito à defesa, antidemocrática, dos 11 jogos. Decisão que contrariou princípios constitucionais cuja abrangência deveria proteger tanto torcedores quanto clubes e atletas. Para ficar em dois princípios e evitar alusões vagas, cito o da ampla defesa e o da igualdade.
Luiz Zanin, do Estadão (4 de outubro), na sua coluna semanal, pelo menos registrou o inconformismo: ‘Que justiça é essa que pronuncia sentenças prejudiciais a uns e benéficas a outros? Ninguém tem culpa dos malfeitos do Sr. Edilson e quadrilha’, escreveu Zanin depois da anulação dos jogos.
Confortável para todos
O que os dirigentes dos clubes mais lesados, principalmente Internacional e Santos, reivindicaram? Primeiro, diálogo. Segundo, algo básico no direito: que, não havendo consenso político, houvesse julgamento considerando a individualidade de cada caso, e não uma decisão baseada no princípio fascista da unilateralidade e da autocracia. Só que os porta-vozes da verdade jornalística bradaram: ‘Nós somos imparciais, mas apoiamos a anulação dos 11 jogos ‘contaminados’’. Já do lado oficial da encenação, Luiz Zveiter, o todo-poderoso, aproveitou e fulminou: ‘Eu tenho a força, que assim seja’. E fez-se o caos.
Falta, entre outras coisas, os ‘jornalistas esportivos’ se qualificarem, evoluírem, enriquecerem o debate, em vez de se esconderem na análise neutra da tática e dos números. Qualificação profissional é um termo muito conhecido por trabalhadores de várias categorias, como a dos metalúrgicos, mas não pelos pequenos deuses das verdades do futebol. Por ignorância, preguiça, má-fé ou mesmo falta de hábito, não se diz ao torcedor que, assim como várias entidades da sociedade (empresas, fundações, órgãos públicos etc.), os clubes também são amparados pela lei. Alguns clubes no atual imbróglio do Campeonato Brasileiro (principalmente Internacional, Figueirense e Santos) foram punidos por algo externo a suas vontades, uma máfia que fabricava resultados. A depender das vozes passivas da imprensa esportiva brasileira, provavelmente a culpa do caos e da decepção será de torcedores e jogadores inconformados, selvagens e irresponsáveis.
Mas quem vai ressarcir os gigantescos prejuízos de um clube que, devido a essa penada de Luiz Zveiter, cair para a segunda divisão? Ou de um outro que deixar de ir à Libertadores, torneio que rende milhões de dólares? E como fica o torcedor enganado por essa fraude generalizada? E as fraudes acabam aí, no patético árbitro Edílson Pereira de Carvalho? Todos sabem que não, mas é confortável para todos que assim seja, pois o show não pode parar. E por que ninguém mais fala da MSI, essa empresa-fantasma supostamente comandada pelo sinistro Bóris Berezovsky?
Mea-culpa tardio
Na segunda-feira 17, o ponte-pretano Anderson Tomaz morreu em decorrência de uma paulada na cabeça durante briga com torcedores do São Paulo, em Campinas, nas imediações do estádio Moisés Lucarelli, que distribuía os ingressos gratuitos para o jogo-fantasma Ponte Preta e São Paulo de quarta-feira, 19 de outubro, um dos 11 remarcados pelo STJD. Quem se responsabiliza por essa vida perdida? Agora, que o mal está feito, a indignação contra a violência e os ‘assassinos’ é geral. Mas quem falou disso antes?
Cléber Machado (rede Globo e Sportv), verdadeiramente engajado na idéia de que ‘o show deve continuar’ que caracteriza a emissora do seu chefe Galvão Bueno, constatava ao narrar o caos na Vila Belmiro, dia 13, como se a responsabilidade pela baderna fosse do Santos Futebol Clube e seus torcedores: ‘Mas o Fluminense jogou e não reclamou’. Certo, devemos então ser cães amestrados e bater palmas para os gerentes do circo, diz Cléber Machado nas entrelinhas de sua narração global, sempre medíocre, subserviente e conformista.
Depois do caos e da violência decorrentes da ‘sábia’ decisão da anulação dos 11 jogos, alguns jornalistas tiveram a honestidade de fazer uma autocrítica. Antero Greco (ESPN Brasil) e Renato Maurício Prado (no programa CBN Esporte Clube) foram dois que fizeram esse meã-culpa válido, mas infelizmente tardio. O que fica da história, mais do que esses pedidos de desculpas disfarçados, com certeza, é uma constatação: tudo isso é realmente triste.
******
Jornalista