Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A culpa não é só do deadline

Primeiro, acabaram com copidesques e revisores, pois os computadores haviam chegado, com seus corretores ortográficos para ajudar os editores. Depois, mandaram reduzir cada vez mais o prazo de fechamento das edições, o deadline, porque os jornais têm que chegar antes do sol às bancas dos lugares mais distantes. Os donos das empresas devem ter economizado bastante com essas decisões, mas não conseguiram, com o enxugamento das redações, evitar a crise que aí está. A ausência dos profissionais que cuidavam da qualidade dos textos e a pressão dos horários de fechamento podem ser identificadas nos jornais.

Antes, eu culpava apenas o segundo fator, o deadline, mas agora penso que parte dos erros cometidos por repórteres, redatores e editores obrigados a trabalhar com um olho na tela do computador e outro no relógio também ocorreria se eles dispusessem de todo o tempo do mundo. Para muitos, ficar livres da ditadura do deadline importa quase nada, porque lhes falta o principal: o prazer de escrever.

Quem escreve por prazer vai além do texto padronizado, de cintura dura, e procura a originalidade sem complicar porque espera ser lido por um universo variado de pessoas. Ao preparar uma grande reportagem ou uma pequena nota, esse profissional vai evitar os lugares-comuns, por exemplo, e questionar palavras e expressões sem significado, usadas há muito tempo nos meios de comunicação, ninguém sabe por quê. Há redatores que não se atormentam com isso e continuam escrevendo de qualquer jeito, sem a menor preocupação. Do outro lado, eles sabem, encontram-se leitores, telespectadores e ouvintes geralmente pouco exigentes. A maioria não tem condições de identificar falhas e jamais vai exigir qualidade dos profissionais.

Mas, um pequeno grupo que às vezes se manifesta esbarra na prepotência das redações. Esses concluem que a interatividade com o público é muito relativa e, com raras exceções, tem por objetivo atender aos interesses das empresas de comunicação. Parece que todos nós morreremos antes de ocorrer alguma mudança nessa área. Por isso, escreve-se impunemente nos jornais e fala-se no rádio e na TV, por exemplo, que ‘a carne de frango vai sofrer aumento’ no mercado interno quando os produtores fecharem novos contratos de exportação para os mercados atingidos pela influenza aviaria. O preço do álcool também ‘sofre aumento’, e nesse caso não existe explicação, pois a safra de cana vai muito bem. Um técnico da área econômica do governo federal disse, segundo a rádio, que a inflação vai ‘sofrer queda’, apesar dos prognósticos pessimistas dos setores de oposição ao governo Lula. Geralmente, quando a imprensa usa o verbo sofrer ligando-o a algum produto, quem paga (sofre) é o consumidor.

Alguém inventou a expressão ‘marcar presença’, que ocupa cada vez mais, em todas as editorias, o lugar de estar, comparecer, apresentar-se e outros verbos de significado preciso. ‘Bola da vez’ é usada com tanta insistência que pode significar alguém momentaneamente em evidência ou qualquer coisa considerada ‘na moda’; mas também se refere, às vezes, a personalidade com a cabeça ameaçada ou sob processo de fritura, ou ainda algum produto ou tema que mereça no momento atenção especial. Enfim, essa expressão vale para quase todas as situações e acaba não significando nada. Aparece em diversas editorias dos jornais e nos mais variados programas de rádio e TV. Tudo indica que muitos recorrem a esse modismo sem imaginar que sua origem está nos salões de sinuca. Trata-se da bola de menor valor, aquela que deve ser encaçapada primeiramente.

Sutilezas

Nas locuções de futebol, uma das expressões mais utilizadas é a estranha ‘passar pela marcação’, com as variações ‘ir pra cima da marcação’ e ‘encarar a marcação’. Um narrador disse que o centroavante passou a bola ‘entre as pernas da marcação’, e depois o comentarista ao seu lado elogiou a habilidade do tal atacante, que conseguiu dar o ‘drible da vaca na marcação’ e ainda aplicou um chapéu no goleiro antes de fazer o gol.

As pessoas que foram ao estádio garantem que a marcação, no gramado, era aquela de tinta, conhecida de todos, cujas funções são delimitar a área de jogo, o meio de campo, a grande e a pequena área, além das meias-luas de onde se cobram os escanteios. O que os torcedores viram foi o centroavante passar pelo marcador de quase dois metros de altura e com cara de mau, e depois, em outro lance, jogar a bola entre as pernas do grandalhão. Essa forma esquisita de falar se alastra entre os locutores, comentaristas e repórteres de campo das emissoras de rádio e TV. Até parece coisa combinada, pois apenas um ou outro usa expressões normais durante a transmissão dos jogos.

Muitas pessoas estranham também a utilização indiscriminada do verbo operar pela imprensa. Quando o tempo está bom, com céu de brigadeiro, os aeroportos ‘operam normalmente’. Se o céu está carregado de nuvens escuras, esses terminais ‘não operam’. Na véspera dos feriados prolongados, jornais, rádios e TVs informam que os bancos fecham amanhã, sexta, e só voltam a ‘operar’ na terça-feira. Há muito tempo é assim. Mas não há notícia de que os Conselhos Regionais de Medicina do Brasil tenham entrado algum dia com ação na Justiça contra os aeroportos ou bancos por exercício ilegal da profissão, charlatanismo. O verbo operar não é exclusivo dos cirurgiões. Significa também fazer, realizar alguma coisa em resultado próprio; agir, executar, fazer funcionar, obrar, defecar. É claro que um aeroporto, por exemplo, não tem condições de executar, fazer funcionar etc. Alguém, no aeroporto, é que terá de cuidar das operações, ou operar. Portanto, não se trata de um verbo proibido, mas quando usado de forma indiscriminada ou fora do contexto pode induzir leitores, ouvintes ou telespectadores ao erro, porque também nesse caso a maioria das pessoas não tem condições de avaliar o trabalho dos jornalistas.

Operar carrega tantas sutilezas quanto acontecer, o qual só deveria ser usado para explicar algum fato inesperado. Caso se trate de um evento programado, ensinam os manuais, será errado dizer que ele vai acontecer ou aconteceu. Mas parece que está proibido escrever, por exemplo, ‘o jogo será realizado’ dia tal, o encontro ‘será’ amanhã, a festa ‘foi’ ontem. Essas formas, que sempre foram consideradas certas, deram lugar a acontecer no vale-tudo dos textos atuais. Assim, os jogos do campeonato acontecem conforme a tabela, os aeroportos e os bancos operam normalmente, o pão-de-queijo e o combustível sofrem mais um aumento, e as reuniões da equipe econômica do governo não decidem nada a favor do povo.

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Jornalista