Partindo do princípio de que o conceito de democracia depende da integridade das instituições, fica fácil entender por que o Brasil, em que pese a decantada estabilização econômica, continua amargando os piores índices mundiais em termos de conquistas sociais. Um quatro vergonhoso que a imprensa não se cansa de retratar, mas que se perpetua graças a inércia e a pusilanimidade dos demais poderes, inclusive no que diz respeito à parcela majoritária da população que, por assim dizer, feliz como pintinho no lixo, baseia sua avaliação do governo tão somente nos bons números da economia.
De fato, só mesmo numa sociedade que parece ter perdido os parâmetros da decência e a capacidade de indignação para explicar a tolerância e complacência com a rotina de transgressões que infesta os noticiários. Mesmo as mais escabrosas, como o verdadeiro bordel em que se transformou o Senado, com os tais atos secretos e delitos que num país mais sério justificariam até o fechamento da Casa. Ou, no mínimo, a interdição dos suspeitos até a devida apuração dos fatos pela justiça, se bem que com a evidente cumplicidade do judiciário, que prefere silenciar a imprensa em vez de punir os responsáveis, a sugestão lançada pelo senador Cristóvão Buarque infelizmente é letra morta.
Templo dos vendilhões
De qualquer forma, mesmo sem vocação para o barulho como nossos hermanos argentinos, é estranho, para não dizer lamentável, que os políticos continuem pintando e bordando sem uma reação à altura da sociedade. E não me venham com o papo de que a resposta popular deve ser dada nas urnas, pois pior do que a famigerada memória curta do brasileiro é a propensão do eleitorado de rifar o voto, como atesta a longevidade da gangue que se instalou em Brasília, com seu séqüito de apaniguados e serviçais à tiracolo. Não é todo mundo, é claro, mas imaginem se tem cabimento um contingente de dez mil funcionários, regiamente remunerados pelos cofres públicos, a serviço de 81 senadores, muitos dos quais mal dão as caras por lá.
Sem falar que se depender apenas da pressão da imprensa, as denúncias parecem afetar cada vez menos uma classe política blindada por uma série de salvaguardas legais engendradas em benefício próprio. Daí haver até quem desdenhe abertamente da situação, como fez o deputado gaúcho Sergio Moraes, com sua didática afirmação de que está pouco se lixando para o que diz a imprensa, que segundo ele seria incapaz de influenciar a opinião pública. Ou, pelo menos, não o suficiente para fazer a cabeça do eleitor – o que, aliás, não deixa de ser uma daqueles verdades desagradáveis que ninguém gosta de admitir.
E nem poderia ser diferente, considerando que o desdém – para não dizer deboche – para com a opinião pública vem do chamado andar de cima, a começar pelos que deveriam ser os primeiros a zelar pela moralidade e integridade das instituições, mas que no entanto são os primeiros, isto sim, a dar maus exemplos.Como José Sarney e seus asseclas, ao fazer do Senado uma espécie de templo dos vendilhões, e o próprio presidente Lula, ao não só endossar como colocar-se ao lado do que há de pior no cenário político, em troca de um apoio que, sejamos francos, equivale a vender a alma ao diabo.
Exageros e deslizes
Isso tudo diante da impotência de uma imprensa visivelmente enfraquecida por contingências que vão desde a virtual carta branca conferida a Lula pelo grosso da população, ao próprio golpe que representou a extinção da Lei de Imprensa e o fim da exigência do diploma para o exercício da profissão. O que resultou numa evidente fragilização da prática jornalística, cuja falta de legislação específica deixa o setor a mercê de um judiciário que, pelo que se tem visto, está longe de inspirar confiança. Como sugere a proibição imposta ao Estado de S.Paulo de divulgar as investigações da Polícia Federal sobre as maracutaias da família Sarney, entronizando uma nova modalidade de censura togada que é bem capaz de virar jurisprudência, a julgar pelas reticências do próprio presidente do STF, o normalmente loquaz Gilmar Mendes, que alegou desconhecer o teor do despacho do desembargador amigo de Sarney para não falar do caso.
O que fica claro nisso tudo é o caráter delituoso e caricato da democracia brasileira, em que a queda da Bastilha só ainda não se deu porque, afinal de contas, pão e circo não faltam. E o brioche governista, como todo mundo sabe, são os programas assistencialistas que permitiram a Lula não só passar incólume à série de trapalhadas da companheirada, como dar-se ao luxo de pisotear a própria biografia, ao abraçar antigos desafetos e símbolos daquilo que sempre combateu, nos tempos em que esse tipo de aliança era impensável. Que Lula tivesse de fazer concessões em nome da governabilidade, vá lá, não seria o primeiro nem o último. Inconcebível é que viesse a se rebaixar a ponto de defender gente que pelo certo deveria estar na cadeia.
Vivemos, obviamente, uma crise de instituições. Executivo, legislativo e judiciário são um arremedo do que se espera de poderes destinados a honrar os valores democráticos. O povo é isso que se sabe, só quer saber de comida no prato, da novela e do time de coração, e se ainda sobrar algum no bolso, aleluia. Sobra a imprensa, que salvo os exageros e deslizes de praxe – como a imperdoável manutenção de Sarney como colunista fixo, por parte da Folha de S.Paulo –, tem sido uma voz isolada à serviço de nossa mambembe democracia.
******
Jornalista, Santos, SP