Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A efervescência de 68 sob novas lentes

As datas redondas sempre estimulam a rememoração de acontecimentos. Os meios de comunicação, pela sua própria natureza, tendem a se tornar a alavanca propícia para tal fim. Que a mídia assim proceda, é algo tão previsto quanto compreensível. A questão, todavia, merece observações. Preocupa-me quando tais ‘rememorações’ são promovidas com acentuado tom épico, em prejuízo da omissão de certa fragilidade dramática, própria daquele tempo rememorado.

Jornais, revistas, livros e documentários têm gerado profusão de ofertas a respeito do ‘glorioso’ 1968. De tudo que tem sido proposto, extraio a sensação de a ‘juventude de 68’ representar o último espasmo de ‘genialidade reativa’. Será que foi mesmo? Será que, de lá em diante, o mundo passou a ser um cenário no qual nada comporta (ou comportará), à altura de equiparar-se à ‘excelência’ da ousadia, protagonizada por uma geração de ‘iluminados’? Indago com absoluta isenção se, efetivamente, merecemos tanto destaque. Dela fiz parte. Não há arrependimento; não há tampouco maior orgulho. Tratava-se de outra conjuntura, na qual foi possível aquela ebulição (para bem e para mal).

O incômodo que procuro compreender diz respeito ao fato de vivermos numa ambiência mundial das mais complicadas: desemprego crescente, escassez de alimentos, terrorismo, aquecimento global, tensões raciais, culturais e religiosas. Num quadro presente com tais impasses, pode ser problemático vender-se a imagem de um ‘outrora heróico’. Nesse sentido, foi oportuna a entrevista de Edgar Morin, concedida ao jornal Folha de S.Paulo e publicada na edição de 28/04 (Mal-estar de maio de 68 é ainda mais profundo hoje). A pretexto de o teórico abordar o ano de 1968, após fazer breve retrospecto, optou por concentrar seu foco na atualidade.

Intelectuais são necessários

Reproduzo, a seguir, alguns trechos:

‘Mas o que piorou mesmo foi o fato de termos perdido a fé no progresso. O mundo ocidental dava como certa a idéia de que o amanhã seria radioso.’

‘O sentimento de precariedade é agravado pelo fato de os pais não saberem se seus filhos terão um emprego. Tampouco há esperança vinda da esfera política. Os políticos hoje se contentam em pegar carona no crescimento econômico. Não bastasse a ilusão de que esse crescimento da economia resolveria os problemas, eis que agora impera a estagnação.’

‘E quando não há mais futuro, a gente se agarra a um presente desprovido de sentido ou ao passado – nação e religião.’

‘Repare na força dos evangélicos nos EUA, berço da sociedade mais materialista do mundo e onde a teoria do criacionismo não pára de se espalhar. Tudo isso é uma grande regressão. Não acredito no choque das civilizações, acredito na volta da barbárie em suas mais diversas formas.’

‘A internet tornou-se um sistema nervoso artificial que tomou conta do planeta (…), mas os sistemas de comunicação não criam compreensão. A comunicação apenas transmite informação. É preciso estimular o surgimento de uma consciência planetária. Se a internet não desenvolver a idéia da comunidade de destinos da humanidade, terá apenas uma função limitada e parcelar.’

‘O intelectual é alguém que toma a palavra em público para levantar problemas fundamentais. Infelizmente, os intelectuais foram levianos quando se tornaram stalinistas ou maoístas. Eles enganaram as pessoas. Por outro lado, é ruim quando nos deparamos com um mundo entregue a peritos, especialistas e economistas que são incapazes de enxergar a abrangência dos problemas essenciais e globais. Intelectuais são necessários, mesmo quando eles se enganam.’

Herdeiro involuntário do fascismo

As pontuações críticas de Morin devem, sobretudo, ser avaliadas com a imparcialidade devida, sob pena de o poder da ‘crença’ obscurecer a paisagem, impedindo-nos, assim, de enfrentarmos as reais condições postas. De outro lado, também merecem destaque as respostas que Zuenir Ventura deu, sobre igual tema, na mesma 2ª feira, à noite, no programa Roda Viva (TV Brasil / TV Cultura).

Recentemente, na condição de integrante da ‘geração de 68’, Paulo Cezar Guimarães, jornalista e professor, pediu-me um depoimento para constar na página virtual da faculdade onde leciono. Para tal, escrevi o texto seguinte (publicado na manhã de 03/05), cujo teor entendo que bem dialoga com o conjunto do presente artigo:

‘Três dias antes da divulgação do AI-5, eu acabara de completar 19 anos. Por conta de, em 1949, haver nascido na Itália do pós-guerra e, de lá, partir, em 24/08/1956, para os trópicos brasílicos, chegando em 07/09, minha vida escolar sofreu alterações, a ponto de, aos 19 anos, ainda cursar o segundo ano clássico.

Em 1968, era diretor cultural do ‘Grêmio Estudantil da Associação Cristã de Moços’, que, a exemplo de hoje, era um prédio de seis andares na Rua da Lapa, 86. Embora a instituição fosse ‘cristã’, à época já me definira ‘agnóstico’, condição que, com o passar do tempo, ficou ainda mais fortalecida e, aos 58 anos, inabalável.

Naquela época, em plena sintonia com os propósitos da A.M.E.S., órgão responsável pelo agenciamento de ‘estudantes secundaristas’, sob a carismática liderança de Wladimir Palmeira, para fortalecer a resistência contra os avanços e abusos de um regime militar que não mais escondia seu nefasto projeto de, no Brasil, abortar, por tempo indeterminado, a democracia, não tive dúvida em aderir. Na minha história de involuntário herdeiro do regime fascista, na Itália, não me foi difícil decidir ao lado de quem ficaria. Prestei, pois, desde a primeira hora, apoio à A.M.E.S.

A vigilância da dúvida

Sem remeter a detalhes que poderiam sugerir qualquer insinuação ‘heroicizante’ de minha tímida biografia, o fato é que, ao constatar o desaparecimento de meu melhor amigo (Reinaldo), com apenas 18 anos (uma dor incurável) – e, para sempre, como ‘desaparecido’, permaneceu –, compreendi que tal fim não queria para a minha vida.

Nos primeiros dias de janeiro de 1969, portanto, decidi que não seria lógico alguém, em nome do que fosse, no limiar dos 20 anos, trocar a vida pela morte, independentemente da excelência da causa. Assumi o conflito entre ser um ‘anônimo herói morto’ e um ‘desconhecido prudente vivo’. Não foi fácil. Todavia, o esforço em tentar equacionar esse impasse ético muito colaborou para o amadurecimento consistente.

A rigor, a vida me estava presenteando a segunda oportunidade para pesar, ponderar e, enfim, decidir: a primeira (sair da Itália para o Brasil) não dependera de minha vontade. A segunda (permanecer na luta, ou buscar uma ‘terceira margem’) cabia tão-somente à minha avaliação. Assim procedi e, do mesmo modo, conduzi (e venho conduzindo) a vida.

Há algo do qual sempre me procurei manter preservado. Refiro-me a sentimentos de nostalgia, melancolia, frustração, depressão. De outro lado, há algo do qual sempre me tentei aproximar: o distanciamento crítico, o olhar desapaixonado, a autonomia crítica. Daí, posso extrair que não reside no passado a vivência gloriosa. Não se mostra, no presente, nenhuma dadivosa situação. Não há de se criar expectativa fulgurante para a vida futura. O que importa, para o enriquecimento na experiência de viver, é: a aprendizagem colhida no passado, o esforço em compreender avanços e limitações do presente e, por fim, lançar, para o futuro, um olhar de expectativa afirmativa, sob a vigilância angustiada da dúvida.

Degradação do ethos cultural

A juventude de ‘68’, como é próprio do jovem, apostou em nobres ideais e também em atos exagerados, desmedidos. O resultado deu em ganhos e perdas. O melhor mesmo é que cada jovem não se deixe arrastar por retóricas inflamadas, atrás das quais há sempre uma ‘consciência adulta’ cujo objetivo é alcançar, com sua ambição, a afirmação pessoal. Quantos adolescentes e jovens a civilização já exterminou em nome de promessas libertárias e transformadoras? Quantas guerras arrebanham milhares de jovens a perderem suas vidas, em favor de altas faturas arrecadadas pelos cofres dos ‘negociantes da guerra’? Quantas promessas de vida têm sido abortadas, em nome de ‘verdades cegas’ ou ‘mentiras mirabolantes’? Avançar e ousar, sim, sem, porém, pôr a preservação da vida como moeda de troca. Se alguma contribuição, portanto, o presente depoimento tem a registrar, é o alerta contra as tentações ‘emocionalizadas’ que podem ceifar, precocemente, projetos de vida.’

Como conclusão, posso declarar que tenho orgulho de haver pertencido à ‘juventude de 1968’ e cada jovem, ‘pós-juventude de 1968’, não se deve punir por haver integrado gerações posteriores. A vida está aí como desafio para saltos qualitativos. É dever de cada um envolver-se com o que defina como projeto de uma vida capaz de não representar o esmagamento do outro, em nome da afirmação de si. Para atingir esse equilíbrio, é necessário o investimento na expansão do pensar e na aquisição de conhecimento, atributos que a mídia precisa, urgentemente, eleger como prioridade, sob pena de ela colaborar, drasticamente, para a degradação progressiva do ethos cultural.

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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA (RJ)