De um modo geral, a imprensa brasileira dedicou atenção devida às recentes eleições no Chile. Se, por um lado, demonstrou disfarçado desconforto ante a eleição de Evo Morales, na Bolívia, o mesmo não se deu quanto à figura de Michelle Bachelet. As duas recentes vitórias trazem, para a identidade política na América do Sul, ao lado das já obtidas antes, um alinhamento capaz de acenar para um horizonte menos limitado. Pelo menos, essa é a promessa posta pelos acontecimentos.
Diferentes Cartas chilenas
O leitor menos impaciente saberá compreender o porquê de o início do presente artigo aludir primeiramente a um fato literário. A literatura brasileira, pós-Gregório de Matos, abriga uma das mais ricas páginas de sátira político-literária. Refiro-me aos 4.268 versos que, distribuídos em treze cartas, Tomás Antônio Gonzaga, em 1789, escreveu sob o título de Cartas chilenas.
Com o pseudônimo de Critilo e falsamente na condição de habitante da Colônia, em Santiago, Gonzaga escreve para o leitor fictício Doroteu que, supostamente, estaria na Espanha. O artifício tinha por propósito desmascarar governo de Fanfarrão Minésio, então governador da Capitania do Chile. Sabe-se, porém, que o real intuito consistia em registrar a corrupção e a crueldade, práticas com as quais d. Luís da Cunha Menezes, governador de Minas Gerais, entre 1783 e 1788, conduzia a administração.
Felizmente, nos ares do século 21, a realidade brasileira não precisa mais recorrer aos procedimentos dissimulados de Gonzaga para que denúncias e cobranças venham à tona. Valendo-se do ar respirável da democracia, a cobertura jornalística, no Brasil, traçou completo perfil biográfico de Bachelet, o que permitiu ao (e)leitor brasileiro saber como o eleitor chileno se comportou.
Igualmente importante foi a notícia que deu conta de uma vitória que leva o futuro governo a ter maioria no Congresso. Com clara aliança de centro-esquerda, Bachelet será empossada, em março, com o devido suporte na casa legislativa. Eis aí uma primeira lição que se espera que um dia o eleitor brasileiro aprenda, ou seja, fazer de sua escolha um compromisso com a lógica do conteúdo e não com a esperteza dos interesses imediatos.
No Chile, a centro-esquerda dobrou a direita. O concorrente, milionário e proprietário da rede de televisão Chilevisión, além de principal acionista da companhia aérea chilena (Lan Chile), Sebastián Piñera, uma espécie de Berlusconi latino-americano, não seduziu a vontade majoritária do eleitor chileno.
Rastreando edições dos principais jornais do país, publicadas na quarta-feira (16/1), a respeito da vitória de Bachelet, delas podemos extrair algumas observações quanto ao tratamento jornalístico que os diferentes veículos de informação prestaram a seus leitores. Para tanto, selecionaremos apenas as chamadas das matérias, recordando que, dentre os selecionados, apenas o Jornal do Brasil não destacou como manchete, nem ilustrou com foto alguma, a não ser em páginas internas.
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O Estado de S.Paulo – ‘Pela primeira vez, Chile tem mulher na presidência’.**
Folha de S.Paulo –’Mulher será nova presidente no Chile’.**
O Globo – ‘Socialista é primeira mulher a governar Chile’**
Jornal do Brasil – ‘Ex-torturada e socialista presidirá o Chile’.**
Correio Braziliense – ‘Chile elege primeira mulher presidente’.Como se vê, os jornais selecionados não resistiram ao dado de haver vencido uma mulher, fato que, em se tratando de América Latina, não deveria causar maior destaque, se nos lembrarmos de experiências anteriores na Argentina, na Nicarágua e na Venezuela. Seguramente, não terá sido esse o aspecto a orientar o voto do eleitor chileno. Igualmente a razão não será encontrada em outras características da candidata vitoriosa, a exemplo de ‘socialista’, ‘separada’, ‘ex-torturada’, ‘agnóstica’ e, por fim, exilada na antiga Alemanha Oriental. Todavia, a imprensa brasileira não deixou de pontuar, em suas matérias, tais aspectos personalógicos e biográficos. Em síntese, o eleitor chileno não se entregou a uma ‘aventura’ e, menos ainda, por nenhum traço midiaticamente ‘interessante’. Também o eleitor chileno não votou no ‘socialismo’, embora a manchete de O Globo tenha priorizado o adjetivo ‘socialista’.
Muitas matérias sobre as eleições chilenas foram escritas na imprensa brasileira. Tão subordinada, entretanto, a registro de fatos, num misto de rigor funcional e aversão analítica, essa mesma imprensa perdeu a oportunidade de explorar didaticamente a lição mais importante que a política chilena poderá ter dado ao Brasil, especialmente estando o país em ano eleitoral: a capacidade de organizar, acima de vaidades pessoais e interesses localizados, uma coalizão verdadeiramente de centro-esquerda.
Essa experiência a política brasileira ainda não teve maturidade para implantar. Aqui parece não haver lugar para ‘concertação’, nome da coalizão da centro-esquerda chilena. No Brasil, predomina ainda o ‘centrão’. Governos anteriores sempre compuseram suas forças com suportes conservadores. O atual, cuja história lhe dava credenciais para o passo devido, jogou fora de maneira lamentável. Seria, na trajetória brasileira, um grande momento se, em nome de compromissos com os destinos da nação, se promovesse um cinturão de alianças com o que há de melhor entre nós.
Entre o devaneio e o delírio
Quem sabe, em meio ao devaneio cívico, se imaginasse a coalizão PT-PSDB-PSB-PPS-PDT-PCdoB-PV-PSOL. Este seria o efetivo arco de centro-esquerda, no Brasil. Se o devaneio cívico se tornasse realidade, Tomás Antônio Gonzaga teria cumprido a missão político-literária mais importante de nossa história. Contudo, temo que o devaneio evolua para o mais absoluto delírio, o que demonstrará que a escrita de Cartas chilenas ainda não cumpriu plenamente seu destino.
Muito parece haver para ser escrito sobre figuras no estilo de ‘Fanfarrão Minésio’. É bem verdade que, rememorando o conteúdo de Cartas chilenas, de ‘crueldades’ já nos livramos. O mesmo, porém, não podemos afirmar a respeito de ‘corrupção’. Bem, enquanto o delírio não se converte em realidade, o que resta é torcer pelo sucesso de Michelle Bachelet.
A positividade do mandato de Bachelet será indispensável a redefinições estruturais na política de todo o continente sul-americano. Outra lição o Chile dá e esta igualmente ignorada pela cobertura jornalística brasileira: no Chile, não há disfarce. A direita se autonomeia como tal. É um caso singular na América Latina. No Chile, não há recursos retóricos dissimulados (‘progressista’, ‘republicano’, ‘liberal’ e equivalentes). Menos ainda é imaginável alguém, eleito com perfil de esquerda, vir a público para declarar que ‘eu nunca fui de esquerda’. Lá, direita é direita; esquerda é esquerda enquanto o centro se molda.
No Chile, é o centro que se desloca para as margens e não, como no Brasil, as margens se moverem para o centro. Conclui-se, portanto, que algumas características da política chilena bem poderiam ter sido melhor aproveitadas pela cobertura jornalística, em lugar de acentuar-se esse ou aquele detalhe biográfico cujo fim é diluir-se na imensidão inócua das ‘curiosidades’. Por outro lado, há de se reconhecerem dificuldades para os profissionais responsáveis por coberturas políticas no Brasil que se situam além da pura vontade. Refiro-me ao embaralhamento de nomes em relação a siglas partidárias, o que apenas seria erradicável, mediante profunda reforma política.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)