Geralmente, a imagem que temos da mídia e de seus representantes – jornalistas ou não – é de que são os salvadores, que defendem a vida acima de tudo, que são imbuídos por princípios que, acima de tudo, defendem os mais fracos, os oprimidos; que o seu papel é, em qualquer circunstância, o de defender o mais frágil. Infelizmente, nem sempre é assim – mais uma vez, em menos de seis meses, não foi.
O sensacionalismo, a cultura do consumo, exacerbadamente trabalhada desde a infância e em todas as áreas, inclusive a da informação e a falta de regulamentação da profissão, com certeza ajudaram muito nas distorções que vemos do papel da mídia a décadas e, recentemente, no caso Nardoni e Eloá, transformaram a mídia em espetáculo, infelizmente barato, chulo. O papel da imprensa é informar, ou será que também é nosso papel sermos juízes, promotores, advogados de acusação, e às vezes de defesa, psicólogos, psiquiatras, criminalistas, especialistas em segurança, ou seja lá o que for?
O caso da menina Eloá, de quinze anos, me fez refletir mais profundamente sobre o papel da imprensa na sociedade, em minha sociedade. O meu papel, como futuro jornalista, representante da imprensa. Esta imprensa?
Por que a imprensa tem tanta dificuldade em fazer autocrítica? Esta é uma pergunta bastante oportuna.
Descontrole total
Na segunda-feira (13/10), o Brasil acordou com a notícia de que um rapaz de 22 anos havia feito refém sua ex-namorada, de 15 anos, uma amiga e mais dois colegas de escola. Dali por diante, até o final trágico da ‘novela armada pela mídia’, foram mais de 100 horas e dezenas de capítulos sobre Lindemberg Fernandes Alves, em primeiro momento um jovem trabalhador (tinha dois empregos para ajudar a família), sem vícios, não bebia, não fumava.
Com o passar dos capítulos, o jovem rapaz foi sendo narrado como um criminoso, desequilibrado, seqüestrador, marginal de alta periculosidade. As mídias, para venderem sua novela, recheavam os capítulos de detalhes, um seleto grupo de profissionais ‘habilitados e gabaritados’ passou a dar entrevistas: advogados, especialistas em segurança, psiquiatras, criminalistas, psicólogos foram traçando o perfil psicológico, social, amoroso e todos os possíveis, imagináveis e impossíveis do rapaz, agora marginal. As mídias submeteram ‘os especialistas’ a perguntas ridículas do tipo ‘O que o rapaz estava pensando quando entrou no apartamento?’, ‘O que ele queria quando colocou a camisa do São Paulo na janela?’
Daí para a loucura foi um pulo. Eis que no segundo dia, Lindemberg falou com uma emissora de TV e o ‘espetáculo’ ficou ainda mais sórdido. Nesse momento, tive a certeza do total descontrole da mídia, da total inversão de valores, de papéis, a perda de referências básicas, a desestabilização da noção original de uso e significado das mídias e o que é pior, a capacidade que a mesma tem de dar novo significado a seu papel, ou pelo menos tentar.
Ética e bom senso
Dois dos mais renomados apresentadores de TV, José Luiz Datena e Sônia Abrão, jornalistas, diga-se de passagem, chegaram ao cúmulo do absurdo de bater boca no ar para decidir quem tinha a melhor equipe de reportagem, a mais preparada, competente; quem fazia um jornalismo mais ético. Ético? Será que os dois têm a real noção do significado desta palavra? Será que esqueceram os manuais, as regras, os limites? A responsabilidade.
Daquele momento em diante, todos eram ‘negociadores’, especialistas em seqüestro e resgate, desde os entrevistados até os apresentadores, passando por pastores evangélicos, advogados e toda sorte de gente querendo aparecer e ‘vender seu peixe’. Passaram a falar com o rapaz/delinqüente usando a televisão como mídia (meio). Como se estivéssemos no MSN, on line, vários comentaristas de segurança (novo verbete, o mesmo que repórter policial) começaram dizer: ‘Este rapaz está fazendo um passeio pelo Código Penal’, enquanto outros, usurpando a função dos juízes, estimavam a pena em 28, 30, 40 anos.
Qualquer pessoa em sã consciência saberia que aquele comportamento não estava ajudando em nada. Pelo contrário, só atrapalhou, pois por telefone o rapaz deixou claro que seu maior medo era ser preso e levar tiros. A ética e o bom senso não indicariam evitar, pelo menos, comentários sobre punição? Ora, era óbvio que ele estava acompanhando tudo pela televisão e com essa atitude a mídia atrapalhou o sucesso da operação, mostrando a todo o momento, em detalhes, passo a passo, as ações da polícia e seu posicionamento.
Manuais de redação rasgados
Para a imprensa e seus ‘atores’, qualquer questionamento feito a respeito de seu papel neste e em outros episódios, a exemplo do caso Nardoni, a resposta será a mesma: ‘Só estamos fazendo nosso trabalho.’ Será que alguém ainda acredita que é possível fazer jornalismo de forma diferente, mais humana e com mais respeito? Será esse o trabalho da imprensa?
Após o fim trágico da novela mexicana da mídia, assistimos já cansados, à caça às bruxas, aos culpados, aos bodes expiatórios. Interessante é perceber que as mídias não se incluem entre eles e, como em qualquer categoria corporativista, não apontam os seus também. Nem Record, nem Rede TV, nem Datena, nem Sônia. Agora, é hora de todos – das mídias – culparem a polícia, o estado, pois afinal estes são os verdadeiros culpados – os primeiros demoraram a agir e quando o fizeram foi totalmente foras dos padrões internacionais, segundo pseudo-especialistas (que durante quatro dias sequer apareceram para oferecer seus serviços); o segundo por não ter proporcionado as condições básicas necessárias para que ‘todos’ tivessem ou tenham segurança e, depois, por não oferecer às polícias a preparação digna para lidar com casos onde a classe média seja o alvo.
Será que algum dia vamos cortar na própria carne? Vamos discutir o trabalho da imprensa? Seu verdadeiro significado? Alguém vai admitir que, mesmo despreparados, ainda assim usurparam a função do negociador, do estado, dos psicólogos etc., falando com um desequilibrado com reféns? E aumentando seu ego doentio, sua ilusão de ator, de celebridade (pois para ele, e todos os que assistiram, parece que tudo não passou de uma novela). Alguém vai degustar o sabor amargo do fracasso e dizer que não deveria ter dado tanta notoriedade para um insano rapaz que estava ameaçando vidas? Alguém vai admitir que, nessa louca procura por ‘audiência e furo de reportagem’, a ética jornalística foi para os quinto dos infernos? Alguém admitirá que sob o estandarte ‘Essa é a função do jornalista’ todos os limites – morais, éticos, políticos, pessoais, civis, econômicos – foram quebrados?
Todos os limites foram transpostos, todos os liames ultrapassados, todos os paradigmas quebrados, todos os manuais de redação rasgados.
Direitos e deveres
Até quando vamos participar deste showrnalismo sem nos sentirmos culpados? Até quando participaremos, dando audiência e assistindo a esses canais, permitindo que eles transgridam todas as leis e limites?
Em verdade, precisamos de uma nova matéria-prima para construirmos novos homens e mulheres, pois devemos a cada instante nos perguntar: a imprensa, as mídias, são o que nós queremos, ou nós somos um produto dela? Nós construímos a agenda setting ou ela nos constrói? Ou será que a palavra correta seria destrói?
Precisamos urgentemente criar uma cultura de consumo baseada, principalmente, na necessidade real. Será que precisamos disto? Devemos ter olhar crítico, sermos comedidos, fazer análise dos discursos, do que está por trás de cada programa de TV, rádio, jornal, das mídias em geral, quais as suas verdadeiras intenções.
Para os estudantes de jornalismo como eu, um alerta: devemos fixar o olhar nos erros para aprendermos com eles, lutarmos para criar uma nova mídia onde o central não seja o lucro a todo custo, mas o homem, a sociedade, o bem comum. Discutirmos a cada dia o nosso papel enquanto ‘formadores de opinião’, lutarmos desde já pela regulamentação da função de jornalista, para que possamos não só ter direito à liberdade de imprensa, mas deveres, responsabilidades, pelo que fazemos e veiculamos.
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Professor e graduando em Comunicação Social/Jornalismo pela Facsul/Unime, Itabuna, BA