Este assunto de tão velho já virou história, dizem. Mas dizem também que a História se repete. Requentar, então, é mais que preciso – é didático.
Como sabemos, George W. Bush foi instalado na presidência dos Estados Unidos por decisão do Supremo Tribunal, que tinha um prazo legal para declarar alguém como vencedor da eleição – lembrem-se que a apuração dos votos da Flórida estava ameaçando durar uma eternidade.
Depois do 11 de setembro, ao dar ao mundo o brado de ‘direita, volver’, Bush afivelou uma poderosa mordaça na mídia americana, que funciona em pelo menos duas frentes: primeiro, no policiamento daquilo que os mesmos americanos apregoam, a ‘freedom of speech’ – liberdade de expressão; e, segundo, no tratamento de fatos históricos pela mídia, através de um vocabulário todo especial, objeto do meu artigo neste Observatório [veja remissão abaixo].
Dias depois do atentado às torres em Nova York e ao Pentágono, em 24 de setembro a escritora Susan Sontag opinou na revista semanal New Yorker: ‘Vamos lamentar juntos aquelas mortes. Mas não vamos ser estúpidos juntos. Um mínimo de conhecimento histórico pode nos ajudar a entender o que acabou de acontecer’. Isto bastou para que uma horda de colunistas inflamados, das mais diversas tendências da mídia, caísse sobre ela – ferozes, esbravejantes, punitivos.
A partir de outubro do mesmo ano, a administração Bush ‘persuadiu’ (à falta de outro termo) os donos das maiores redes de TV americanas a não colocarem no ar as fitas de Osama bin Laden. Aos jornais, segundo o Sydney Morning Herald, foi pedido para não publicarem na íntegra as declarações do líder da al-Qaeda, pois elas poderiam ‘conter instruções em código’. Mas a Casa Branca, questionada, nunca mostrou nenhuma evidência dessa possibilidade.
Esses ‘cala-bocas’, antes do 11 de setembro, seriam simplesmente absurdos, inadmissíveis naquele país. Mas o clima geral de patriotismo desvairado, mais a convocação de Bush à guerra, deixaram os donos da mídia de certa forma impotentes para rechaçar essas imposições.
Ventos pesados
E quanto à divulgação de outros fatos de interesse nacional? O mundo todo soube da baderna havida na contagem dos votos da Flórida. Os americanos engoliram a nomeação de Bush sem revolta. Ficou, entretanto, uma pulga atrás da orelha de muita gente – e de gente com poder. Um consórcio formado pelo Wall Street Journal, o Washington Post, o New York Times e a CNN, entre outros, encomendou um estudo daqueles 170 mil votos rejeitados como ‘ilegíveis’, ao custo de mais de 2 milhões de dólares.
O trabalho foi concluído no final de agosto de 2002, mas, segundo o The Telegraph, de Londres, o consórcio decidiu adiar a publicação da análise dos resultados pelo Centro de Pesquisa de Opinião da Universidade de Chicago, ‘por falta de recursos e falta de interesse geral, devido à maciça cobertura dos atentados de 11 de setembro’. Isso quase um ano depois.
Para o jornalista David Podvin, dono do website Make Them Accountable, o consórcio estava escondendo o jogo. Sua fonte garante que os dados ‘estão sendo encobertos porque [Al] Gore foi o vencedor incontestável’. Segundo o Sydney Morning Herald – o único dos jornais que leio que tratou disso em matéria curta, e na página 8 –, para Steven Goldstein, da diretoria do Wall Street Journal, ‘as prioridades do país mudaram, e as nossas prioridades também’. A porta-voz do New York Times, Catherine Mathis, disse que ‘por causa da guerra e da falta de recursos (sic) a publicação foi adiada’. Em outras palavras, não se fala mais nisso.
Sem dúvida, o 11 de setembro mudou até os parâmetros de legitimidade de um mandato. Nos anos 1970, os achados de dois jornalistas detonaram o processo que tirou o presidente Nixon da Casa Branca. Duas décadas depois, um poderoso consórcio de meios de comunicação, frente a um fato da mesma gravidade, prefere se calar. A ética jornalística foi também outra vítimas do 11 de setembro.
Hoje, os ventos da globalização têm feito circular idéias, tendências e até novas formas de exercício de controle. É duro de acreditar, mas é possível que ventos pesados vindos do norte estejam trazendo ao Brasil uma névoa sufocante – e isso me leva a concluir com pesar: as coisas por aí devem estar mais para Conselho Federal de Jornalismo do que para caso Watergate.
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Jornalista, graphic designer na Universidade de New South Wales, Sydney (Austrália)