Em qualquer sociedade livre e desejosa de preservar a liberdade, a presença de um jornalismo pouco crítico é um fato grave. A falta, porém, de autocrítica é ainda pior. Na experiência brasileira, resguardadas as exceções, o jornalismo crítico é raro, e a autocrítica é nenhuma. Refiro-me, especificamente, aos dois infortúnios que, na semana passada, atingiram dois nomes do esporte brasileiro: Guga e Ronaldo. As lágrimas de ambos revelam bem mais do que inúmeras matérias publicadas. A mídia é pródiga em, celeremente, criar atmosferas constituídas por dimensão épica. A mesma mídia, todavia, é pobre ao tentar capturar a dimensão trágica. Mais ainda, a limitação fica acentuada quando se trata do cenário esportivo.
Há muito se sabe que, cada vez mais, profissionais escalados para cobertura esportiva carecem de qualificação intelectual mais refinada, diferente do que se deu no passado. A razão é simples: no jornalismo esportivo atual, os profissionais selecionados devem voltar-se para a ‘venda de eventos’, ‘excitação do público’ e ‘cumprimento de acordos’. Nessa lógica estão envolvidos ‘empresários’ (agentes) que investem na carreira desse ou daquele atleta. Para completar a cadeia, há, na retaguarda, influentes anunciantes. Para esse enredo, lágrimas não servem. Lágrimas devem ser ‘vendidas’ em telenovelas.
Os ‘passos da destruição’
O que foi proposto de modo mais abstrato na abertura do artigo pretende, agora, conferir ao leitor uma visibilidade mais concreta. Para tanto, dois fatos precisam, antes, de pequeno sumário.
Fato 1: eram 23h05 do ainda 12/02 quando o portal da UOL, em matéria assinada por Antoine Morel, dava a manchete: ‘Às lágrimas, Guga se despede após derrota e homenageia Larri’. Tratava-se da derrota de Gustavo Kuerten, o Guga, para o tenista argentino Carlos Berlocq. Em dado momento da matéria, há o depoimento de Guga: ‘Não é que eu não queira jogar mais, é que não consigo mais.’ Peço ao leitor breve suspensão para inserir o fato 2.
No dia seguinte, na noite de 13/02, o portal da UOL, às 21h04, registrava: ‘Ronaldo rompe tendão do joelho e pode parar de 9 meses a 1 ano’. Sim, Ronaldo que, no melhor estilo Rede Globo (entenda-se: vender ‘emoção’ a qualquer preço), foi batizado pelo não menos efusivo narrador, Galvão Bueno, como ‘o fenômeno’, aos dois minutos do início do segundo tempo, em partida entre Milan e Livorno, trazia, outra vez, aos olhos dos telespectadores, a mesma imagem de dor incontida e carregada de funestas conseqüências.
Em menos de 24 horas, dois nomes idolatrados por grande parte de torcedores brasileiros e estrangeiros tinham sobre si os holofotes da desgraça. O que, efetivamente, o presente artigo deseja problematizar? É simples: de um lado, a força da mídia em, rapidamente, tornar celebridade a pessoa portadora de algo capaz de oferecer alguma singularidade. De outro, a força da mídia em, estrategicamente, omitir, a partir de então todo o perverso processo de ‘escravização’ ao qual fica submetida a mais recente ‘celebridade’. O resultado também é simples: como rapidamente surgem e são, além de consumidas, devoradas, as novas ‘celebridades’ iniciam o caminho da derrocada. É nessa hora que a mídia omite os ‘passos da destruição’.
Emoção e excitação
O jornalismo esportivo não faz, criticamente, a cobertura a respeito das ‘metamorfoses’ por que passam os novos ‘heróis’. São verdadeiros massacres a incluírem preparo físico, alteração de massa muscular, cláusulas contratuais a exigirem comparecimento a eventos, a gravações de publicidade, a entrevistas. Enfim, tudo de que um atleta precisaria para a manutenção de ‘si’ é, graças a injunções movidas pela ‘máquina de moer carne’, violentamente, aniquilado.
O jornalismo esportivo não cobre esse ‘enredo da morte’. Finge que nada vê e nada sabe. Aguarda o desfecho para, então, explorar, com sensacionalismo, o ‘drama imprevisto’ desse ou daquele desafortunado. Nessa hora, o jornalismo esportivo não promove a autocrítica para saber em que grau a mídia, força impulsionadora de ídolos, é a mesma a encurtar a ‘narrativa gloriosa do herói’. Desculpem, ‘senhores jornalistas da empolgação’, mas tenho de dizer quanto vocês são responsáveis por esse esquema de ‘canibalismo’.
É claro que, na cobertura esportiva, existem profissionais com o perfil de Juca Kfouri. Todavia, esse tipo de voz é minado pelo coro dos ‘sanguessugas da fatura’. Na outra ponta, situa-se a figura, um tanto melancólica, do ‘torcedor’ que também ‘torce’, fervorosamente, pelo ‘outro’, para não se ‘retorcer’. Assim, a vida continua. A declaração pungente de Guga e a face exposta da dor profunda do ‘fenômeno’, rapidamente sairão do noticiário, em nome da exaltação de seus respectivos substitutos. Afinal, business e idolatria asseguram giro e multiplicação de capital. Para essa lógica, o que importa é a renovação da ‘dimensão épica’. A ‘queda’ do herói trágico não fomenta lucro. Há profunda diferença entre o ‘teatro de arena’ da Grécia antiga e a ‘arena’ dos ‘campos da teatralidade do evento’, no atual tempo.
Parafraseando uma bela e singela afirmação do poeta e letrista Paulo César Pinheiro (‘O importante é que a emoção sobreviva!’, o que acabou por ser, em 1975-1976, o título de um show em parceria com Eduardo Gudin e Márcia Rodrigues), diria, em versão e contexto demoníacos, que ‘o importante é que a excitação impere!’, não é, jornalistas esportivos? A língua é sábia e precisa: a vivência da ‘emoção’ não se confunde com a dinâmica da ‘excitação’. A primeira humaniza; a segunda brutaliza. Gostaria muito que profissionais dessa área (jornalismo esportivo) respondessem. Seria interessante que o leitor do OI pudesse conhecer o discurso do ‘outro lado’, principalmente quanto às questões aqui pontuadas.
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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da Facha (Rio de Janeiro)