Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A falta que faz o jornalismo crítico

A população do estado do Rio de Janeiro viveu uma semana de horrores. Diferentemente de outras localidades do país, a exemplo de Santa Catarina, vez por outra alvo de ciclones, ou mesmo as implacáveis secas que, de tempo em tempo, ceifam vidas no Nordeste, a ‘Cidade Maravilhosa’ foi atingida por fortes e sequenciais chuvas. Nada além disso; todavia, o efeito foi catastrófico. Até a noite de sábado (pouco antes do envio deste artigo) constava o registro oficial de 221 mortes, sem se computarem sobreviventes feridos, resgatados sob escombros.

Obviamente, não faltou cobertura jornalística (tanto impressa quanto eletrônica) para a sucessão de dramas. Quem, porém, se ocupou de investigar a trama, responsável direta pelo extermínio de vidas? Qualquer cidadão, minimamente atento à sua realidade imediata (carioca ou fluminense), sabe a procedência dos fatores causadores do ‘inferno’.

No pano de fundo encontra-se a parceria de dois regimes que, há décadas, conspiram contra a qualidade de vida na cidade-sede das Olimpíadas de 2016. Explico: a ditadura, no auge da repressão, fundiu a Guanabara ao estado do Rio de Janeiro. A história provou que perderam os dois. A democracia, além de não corrigir as distorções criadas pela ditadura, ainda contribuiu para a expansão do processo de ‘favelização’. Prefeitos e governadores, de todos os matizes ideológicos, fecharam os olhos para ocupações, invasões e construções de alto risco, tanto para as vidas quanto para a preservação ambiental. Todos foram criminosamente omissos.

Ninguém escapa à condenação

O foco da ‘classe política’ está na massa de votos e na minimização dos custos. Sob o império dessa lógica perversa, o flagelado, já punido pela miséria, procura um abrigo onde possa, precariamente, proteger-se contra o sol cáustico e a chuva implacável. Ele não tem o direito de pensar no amanhã porque precisa resolver o ‘hoje’. Ao carente de tudo, o lema é outro. Em lugar do ‘aqui e agora’, apresenta-se a questão emergente: ‘agora… mas onde?’ O ‘aqui’ é mera conseqüência das profundas vicissitudes. Todavia, para ‘variar’, nas coberturas jornalísticas não faltaram repórteres a indagarem a ‘profunda’ questão metafísica a seres que, há pouco, tinham sido vitimados pela perda total do pouco do que tinham: ‘Como se sente diante desta tragédia?…’

Na outra ponta, estão as autoridades públicas cuja inércia consentida não tem programas, seja para darem conta do ‘aqui’, seja para determinarem o ‘onde’. Assim, o quadro de horrores se vai constituindo. Basta, apenas, aguardar-se o sinal dado pela natureza. As matérias jornalísticas, porém, se mostram generosas com as administrações passadas ou presentes. Falta de programas de saneamento, de habitação, de educação, de saúde, de segurança, de fiscalização preventiva… enfim, falta de tudo! Pobre vivo, para político, é voto; pobre morto é dor para quem perdeu. Deste modo, para o político não há perda nunca. Com o vivo, ganha; com o morto, não gasta. E, por favor, não me venham vozes defensoras de ‘a’, ‘b’, ‘c’ com o intuito de protegerem seus ídolos partidários. Nenhum escapa à condenação, consubstanciada pelas inquestionáveis ‘provas nos autos’.

O cinismo do Estado

Se há algo que sempre me intrigou é o tal do ‘luto oficial’ que governantes (nacionais e internacionais) decretam, em função de tragédia coletiva ou de morte de algum notável. Afinal, para que serve o ‘luto oficial’? Nenhuma diferença, na vida cotidiana, é percebida. Nenhum evento programado é vetado. Lembremos que, no Rio de Janeiro, a autoridade pública decretou o indecifrável ‘luto oficial’ por três dias. Contudo, na 5ª feira à tarde, no Maracanã, houve o jogo do Flamengo pela Taça Libertadores. Ao redor do estádio, marcas indeléveis da tragédia. Dentro, quinze mil torcedores acompanhavam, fervorosamente, cada momento de decisão, sem se contarem milhares de outros em sintonia, via TV.

Igualmente, shows já agendados foram realizados e assim por diante. Então, o que quer dizer ‘luto oficial’? Não seria interessante que algum jornalista, na próxima ocasião, indagasse à autoridade de plantão qual o significado do ato decretado? Sim, a questão cabe, já que outros expedientes existem e repercutem, diretamente, na vida de cada cidadão, a exemplo de ‘estado de emergência’, ‘estado de calamidade pública’ e ‘estado de sítio’. Para cada um desses três decretos, corresponde uma prática (ou procedimento). E para ‘luto oficial’? Mero ato burocrático, revestido de significado cínico.

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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA (RJ)