Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A fragmentação dos fatos e a surpresa

Confesso que têm me causado alguma surpresa as reações das pessoas frente ao recente conflito nos territórios da Autoridade Palestina. Geralmente são de incredulidade. O fato escapa da realidade construída sobre a região como se fosse uma aberração, um fenômeno inesperado. Um importante assessor de imprensa mineiro traduziu um sentimento que parece ser generalizado. Disse algo como estar decepcionado com o povo palestino e com os recentes acontecimentos sangrentos na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. E completou com um: quem imaginaria?

Várias são as questões que podem ser levantadas a partir dessa impressão. A primeira é que o quadro de hostilidade entre as facções rivais Hamas e Fatah há muito já se prenunciava. Talvez desde a própria criação do primeiro, em 1987, na cidade de Gaza, seu reduto político.

Leão Serva, em seu livro Jornalismo e Incompreensão, afirma que o ‘volume de cobertura é proporcional ao desentendimento do fato’. E acrescenta que o ‘modelo do jornalismo contemporâneo, que apresenta a novidade como produto a cada edição, impõe à imprensa dar um tratamento de segundo, terceiro, quarto plano, às informações sobre o desdobramento de fatos à medida que o consumidor for conhecendo o objeto da cobertura’. Vendendo sempre novidades ao leitor, a imprensa condena o leitor à ‘desinformação sobre os desdobramentos de longo prazo de fatos que um dia soaram surpreendentes ou sobre as origens de longo prazo de fatos que o surpreenderão em outro momento’. Sendo assim, interessa um fato com forte apelo midiático e, no caso das questões palestinas, por exemplo, um conflito entre grupos armados palestinos com o exército israelense teve, ao longo de tempo, uma cobertura muito maior do que a realidade política interna da Autoridade Palestina. Fragmentando a própria história, torna-se incompreensível uma situação que já era, para muitos, há muito tempo esperada.

Espetáculo de horror

Uma segunda questão que pode ser levantada, e que diz respeito à primeira, é a de como foi, durante todo esse tempo, enquadrado pelas lentes e pela escrita o povo palestino. Na prática do reducionismo, também inerente ao ato de transformar o fato em notícia, não foram explicitadas as diversas correntes ideológicas dentro da nação palestina, suas diferentes crenças, pressupostos políticos e modus operandi. O povo palestino virou uma entidade única e uniforme, como se isso fosse possível em qualquer sociedade complexa. A notícia tende a simplificar tudo para o leitor, de modo a que ele possa, por meio da mídia, organizar o caos que nem sempre é facilmente organizável.

Assim, Hamas e Fatah sempre foram somente dois grupos, como dois partidos políticos de uma democracia ocidental, e não duas facções com ligações familiares, organizadas por meio de clãs, que são como água e óleo e não se misturam.

Escondidas sob a cobertura das tensas relações com o governo israelense, todas as diferenças entre os dois grupos, as brigas pelo poder, as vinganças baseadas na ‘lei de Talião’ que sempre existiram, a perseguição aos ‘traidores’ de uma ou outra facção, a corrupção dentro da ANP, as execuções de adversários, mantiveram-se sob o manto de um grande inimigo comum que transformava toda a miríade ideológica em uma coisa só. Assim como desapareceu da grande imprensa uma significativa parte da população palestina que sempre foi comprometida com a paz e com um eventual acordo com Israel, a ser estabelecido em uma mesa de negociações, e não na prática do terror que somente acarreta mais e mais violência de ambas as partes. A mídia errou ao não dar voz a essas pessoas em detrimento do espetáculo de horror que há anos permeia a relações entre árabes e judeus.

Outras fontes de informação

Há anos, a imprensa israelense (Haaretz, Jerusalem Post e Yediot Ahronot), pela própria proximidade com a Autoridade Palestina, dá outro valor de notícia, atenta para a deterioração dentro de Gaza e da ameaça que o Hamas representa para o frágil equilíbrio no Oriente Médio. O povo palestino, entretanto, continuou a ser enquadrado pelos órgãos de imprensa distantes da área do conflito como somente uma única entidade oprimida e sem voz. Um erro de cunho paternalista e maniqueísta que não contribui com uma vírgula para a paz na região. Há anos Israel argumenta que as lideranças capazes de negociar uma paz longa e duradoura deveriam ser fortalecidas por aqueles que se dizem comprometidos com a causa palestina.

E aí aparece, como fato novo e noticiável, a guerra entre as duas facções que escreve mais um capítulo sangrento nessa história. A frase do assessor é preocupante por, pelo menos, duas razões. É inconcebível a decepção para com o povo palestino. Pouco há a ser feito por boa parte da população civil obrigada a lidar diariamente com um grupo radical armado ocupando ruas, repartições públicas e instituições de ensino e que punem com a morte o pensamento contrário.

Urge que a imprensa dê voz às forças moderadas palestinas para que, enfim, seja alcançada uma resolução de um Estado autônomo palestino e verdadeiramente democrático, um anseio que deve ser comum a todas as pessoas de bem. E quanto à resposta à pergunta do assessor, eu responderia: basta ler e ver – e não somente reproduzir um preconceito viciado sobre as complexas relações de forças que interagem, hoje, no Oriente Médio. Alguns já classificam esse conflito como uma proxy war comandada pelo presidente do Irã, Mahmoud Ahmadnejad; outros falam na construção não de um, mas de dois Estados palestinos distintos. Para aqueles que mantêm laços ou interesse pela região, um conselho: busquem na internet outras fontes de informação, visitem os jornais dos países próximos e/ou envolvidos realmente com a questão palestina. Leiam alguns blogs e não creiam que toda a complexidade do mundo possa ser impressa em somente algumas páginas de jornal. Demanda tempo e vontade, mas a surpresa será, no mínimo, menor.

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Estudante de jornalismo da Universidade Fumec, Belo Horizonte, MG