Vejam como a imprensa ocidental às vezes diz, inadvertidamente, pedaços da verdade que vem tentando omitir: embora a invasão e a destruição da Iugoslávia por forças da Otan já sejam um fato, a guerra na província sérvia do Kosovo, embora pouquíssimo divulgada e comentada na imprensa hoje, está tão quente quanto no fim dos anos 90. O New York Times, que resolveu publicar algo a respeito, aparentemente só deu a notícia abaixo porque a maior parte das vítimas é americana.
Entretanto, a notícia deve soar no mínimo intrigante para quem acompanhou o que essa mesma imprensa ocidental publicou nos últimos 10 anos sobre a guerra na Iugoslávia. Por quê?
1) Segundo a cobertura da imprensa ocidental por todos esses anos, os agentes ocidentais incumbidos de ‘impedir que a Sérvia, sob o comando de Slobodan Milosevic, continuasse cometendo horrendos crimes de guerra’ eram (e são ainda hoje) os países da Otan, ou seja, basicamente Europa Ocidental (agora também alguns países da Europa Oriental) e EUA. No entanto, não fosse pelo incidente relatado abaixo, ninguém saberia que a Jordânia, uma das ditaduras árabes do Oriente Médio, participa da ‘operação da Otan’ (aqui camuflada sob o eufemismo de ONU) no Kosovo. Para quem, durante os anos 90, não ficou apenas com a televisão e o jornal e teve tempo e curiosidade de pesquisar mais sobre a Iugoslávia, a presença de soldados jordanianos no Kosovo não surpreende, já que tropas iranianas foram trazidas para a Bósnia para ajudar na guerra da Otan contra a Sérvia nos anos 90.
Mas, eis o enigma: como explicar a presença dos jordanianos no Kosovo hoje, e dos iranianos na Bósnia há alguns anos? O que é que estes países do Oriente Médio têm tanto a ver com uma guerra interna num país europeu, a ponto de enviarem tropas à Europa sob os auspícios da ONU? Alguém já ouviu falar de tropas do aiatolá Khomeini ajudando o ETA em seu esforço para separar os bascos da Espanha? Ou do rei Hussein ajudando o IRA com suas tropas a separar a Irlanda do Norte da Inglaterra? Vocês devem estar rindo dessas possibilidades, ou melhor, impossibilidades. Por que então justamente isto ocorre na Iugoslávia? E, naturalmente, perguntamos: por que a imprensa ocidental não divulgou nada disso até hoje?
2) A notícia do NYT relata também, num brevíssimo parágrafo (embora seja o mais importante de todo o texto) que a razão da atual violência na região é que ‘albaneses étnicos (muçulmanos) atacaram a minoria sérvia local (cristãos ortodoxos), expulsando 4 mil pessoas de suas casas e destruindo ou depredando 500 casas.
3) Se a notícia relata que ‘não é a primeira vez que oficiais jordanianos abrem fogo contra seus próprios colegas’ [ocidentais da força de paz], então depreende-se que, por alguma razão, a Otan (Europa e EUA) faz questão da presença jordaniana no Kosovo, mesmo lhes causando sérios problemas, o que só faz aumentar ainda mais o enigma.
Pois bem, embora a notícia explique brevissimamente a razão do atual conflito no Kosovo, duas questões fundamentais ficam totalmente sem explicação: a) por que a Otan se meteu neste conflito interno da Iugoslávia enquanto ignora outros, inclusive na própria Europa? b) Se sabemos pela imprensa que a Otan tem mantido ‘tropas de paz’ no Kosovo desde a década de 90, como é concebível que albaneses étnicos possam chegar ao ponto de efetivamente expulsar tamanha quantidade de sérvios de suas casas e destruí-las?
Livre espetáculo
Obviamente isso só seria possível se as tropas da Otan, munidas das mais avançadas armas disponíveis no planeta, estiverem, digamos… fazendo vista grossa para o comportamento dos albaneses étnicos. Mas, esperem um pouco… lembram-se do que a nossa imprensa ocidental nos contou todo esse tempo sobre a razão da intromissão da Otan na guerra interna iugoslava contra seus separatistas? O discurso foi: ‘Os sérvios, sob o comando de Slobodan Milosevic, estão cometendo terríveis crimes de guerra contra os separatistas e provocando uma catástrofe humanitária. Precisamos intervir e impedir.’
A primeira parte da guerra se concentrou na Bósnia, e o resultado da ‘intervenção humanitária’ não foi exatamente o socorro às vítimas, mas sim a consumação da secessão e a oficialização do jugo islâmico separatista da Bósnia em detrimento da liberdade civil e religiosa que lá existia antes. Hoje, a Bósnia, com o auxílio dos EUA e demais países-membro da otan, tornou-se uma república fundamentalista islâmica.
Não surpreende portanto que o mesmo se passe hoje no Kosovo. São os albaneses étnicos (fundamentalistas islâmicos separatistas) que, com o auxílio das tropas da Otan e ‘colaboradores do Oriente Médio’ (Jordânia, por exemplo), estão cometendo ‘limpeza étnica’ contra os sérvios (eslavos, cristãos ortodoxos) que lá habitam há muito mais tempo que os albaneses, desde a Idade Média. E, uma vez que as tropas altamente equipadas da Otan estão lá assistindo ao espetáculo e nada fazem para impedi-lo (como esclarece a notícia abaixo do NYT), fica claro não só que a presença da Otan no Kosovo nada tem de pacífica como também, e lamentavelmente, que a razão divulgada por toda a imprensa ocidental para a intervenção internacional naquela região – ou seja, que os sérvios estariam cometendo massacres contra os albaneses étnicos – é uma fraude.
Duas perguntas-chave
E pior, não uma fraude qualquer, mas exatamente o extremo oposto do que foi apresentado pela imprensa como justificativa para a intervenção militar internacional, o que levou milhões de pessoas em todo o mundo a olhar (até hoje) para os sérvios e seu líder como genocidas dignos dos nazistas, e olhar como correto o covarde bombardeio de Belgrado pela Otan, que levou à morte inúmeros civis inocentes na capital sérvia.
Mas quantos leitores do NYT e da imprensa ocidental como um todo conhecem a história recente da Iugoslávia para, mesmo com a ajuda do ‘furo ideológico’ dessa notícia, tirar as simples conclusões acima? É exatamente desta maneira que os interesses de uma pequena elite de multimilionários e políticos, estadistas da ‘globalização’, ajudados por uma esquerda inteiramente caduca e decadente, determinam as guerras que são e serão travadas. Uma vez que a maior parte da imprensa ocidental, a começar por fontes como Associated Press e Reuters, é financiada por tais elites e uma miríade de associados, não deveríamos estranhar se daqui a poucos anos Israel e Índia forem transformados em ‘Iugoslávias II e III’. A demonização de Israel na imprensa e a ‘transformação mágica’ de Ariel Sharon em ‘criminoso de guerra’ já estão em estágio avançado, enquanto o apoio tácito dos EUA – através de mediadores europeus como a Noruega – aos separatistas islamistas do Sri Lanka e aos radicais tamil na Índia já está em curso.
No mais, só restam as duas perguntas-chave finais: uma vez que o Iraque nunca foi (nem mesmo comparado ao ‘moderado’ Egito) uma fonte importante de terrorismo internacional, por que então foi o Iraque o invadido pelos EUA, e não o Irã e a Arábia Saudita? Olhando para a atual islamização da Bósnia e do Kosovo sob os auspícios da ONU e da Otan, para a invasão do secular Iraque, e não dos fundamentalistas Irã e Arábia Saudita, para a campanha de demonização de Israel na imprensa, para as críticas ocidentais à luta dos russos contra o fundamentalismo islâmico checheno e para o apoio, ainda incipiente porém incisivo, dos EUA e da Europa Ocidental aos separatistas do Sri Lanka e da Índia (parte importante dos quais muçulmanos), de que lado estão os EUA e seus aliados, da democracia e da liberdade ou dos fundamentalistas islâmicos e cristãos, que pretendem reinstituir à força o modelo político teocrático?
O artigo do NYT (17/4/04)
Por Nicholas Wood
Ljubljana, Eslovênia, 17 de abril — Duas mulheres americanas servindo como guardas de prisão para a ONU no Kosovo foram mortas no sábado passado, e mais dez americanos e um austríaco que serviam como carcereiros foram feridos quando um jordaniano, também a serviço da ONU, abriu fogo contra eles, segundo oficiais. O ofensor foi em seguida morto a tiros.
O ataque ocorreu numa prisão na cidade de Mitrovica, ao norte da província. Oficiais da ONU disseram que o motivo do ataque não foi conhecido de início.
Alguns dos feridos estavam em estado grave, segundo a equipe do hospital.
Os americanos mortos e feridos faziam parte de um grupo de 21 carcereiros dos EUA que haviam chegado ao Kosovo em 7 de abril, disse um porta-voz da polícia da ONU. Eles tinham recém-terminado um curso de preparação para seus cargos na prisão, a qual é usada como um centro de detenção para prisioneiros à espera de julgamento por crimes comuns.
‘Eles estavam voltando do centro de detenção após um dia normal de treinamento quando foram atacados,’ disse Neeraj Singh, um porta-voz da polícia da ONU no Kosovo.
Ele disse que pelo menos um oficial jordaniano começou a atirar e que os americanos contra-atacaram, provocando a sua morte.
‘Não houve nenhuma comunicação entre os dois grupos antes do tiroteio,’ disse Singh, descartando rumores na imprensa local de que o tiroteio teria sido causado por uma discussão.
Joe Napolitano, comandante de uma estação policial da ONU próxima à prisão, disse que o jordaniano chegou a atirar no grupo americano por algum tempo antes de ser morto.
‘Ele simplesmente abriu fogo contra o grupo,’ disse Napolitano numa entrevista telefônica. ‘Durou cerca de 10 minutos.’
Oficiais da força de paz e policiais da ONU vêm trabalhando no Kosovo desde 1999, quando teve lugar a campanha de bombardeio da OTAN contra as forças apoiadas pelo então presidente sérvio Slobodan Milośević, que durou 78 dias e visava impedir que tais forças expulsassem os albaneses étnicos da província. Cerca de 3500 oficiais da polícia da ONU encontram-se agora no Kosovo.
A Jordânia mantém uma companhia de 120 oficiais anti-motim na região. Suas tarefas incluem o policiamento externo da prisão, de forma que eles não servem como guardas no interior da mesma. Os EUA têm estado na liderança da administração de prisões e fornecido o pessoal necessário para este fim na província.
Uma declaração emitida pela missão da ONU no Kosovo confirmou as mortes. ‘Três oficiais estrangeiros morreram em decorrência do tiroteio, dois dos EUA e um jordaniano,’ dizia a declaração. ‘Outros onze oficiais estrangeiros foram atingidos por balas e estão sob tratamento médico neste momento.’
O Dr. Milan Ivanovic, diretor de um hospital no norte de Mitrovica onde sete dos oficiais estavam sendo tratados, relatou que quatro deles haviam sofrido ferimentos graves. ‘Uma mulher americana está em condição crítica,’ disse o Dr. Ivanovic numa entrevista telefônica, acrescentando que uma das americanas mortas tinha sobrevivido até chegar ao hospital.
Não é a primeira vez que um oficial jordaniano abre fogo contra colegas. No início do ano passado, em Pristina, um oficial jordaniano abriu fogo contra outro oficial após uma discussão com um rifle semi-automático e depois se matou.
Residentes do norte de Mitrovica, onde se localiza a prisão, relataram por telefone que o tiroteio podia ser ouvido através da cidade.
Esse foi mais um baque para a cidade etnicamente dividida que ainda se recupera de uma onda recente de violência em que 19 pessoas foram mortas e outras 800 feridas.
A violência teve início em Mitrovica e se espalhou pela região quando bandos de albaneses étnicos atacaram a minoria sérvia da província. Mais de 4000 foram expulsos de suas casas e mais de 500 casas foram destruídas ou depredadas, de acordo com dados da ONU.
Harri Holkeri, o líder da missão da ONU no Kosovo, abreviada UNMIK, se disse chocado com o tiroteio.
‘Estou profundamente chocado e consternado com a morte de profissionais dedicados que vieram de tão longe para ajudar o Kosovo na construção de um futuro melhor,’ disse Holkeri numa declaração emitida por oficiais da ONU. ‘Eu ofereço minhas profundas condolências às famílias das vítimas, a seus colegas policiais da UNMIK e aos governos de seus países. Desejo também a pronta recuperação dos oficiais feridos.’
******
Bolsista da Capes