Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A ‘gangue da bicicleta’ e o mito do crime organizado

O jornalismo tem vivido da criação de mitos e lendas urbanas que só aumentam o clima de medo nas cidades grandes. Tanto insistiram na ‘guerra civil’ do tráfico que, em alguns momentos, os conflitos entre marginais e policiais ganham realmente ares de conflito civil. A mais recente ‘organização’ criada pela grande mídia do Rio de Janeiro é a ‘gangue da bicicleta’, que atua nas praias da Zona Sul carioca.

Sabe-se que tais delitos são cometidos em toda a orla, por delinqüentes que roubam qualquer valor com objetivos diversos. No entanto, existe uma grande distância entre se considerar a periodicidade destas ações muito alta, e configurar estas infrações como atitudes de uma organização criminosa, especializada em atacar de bicicleta. A especialização, ao que tudo indica, ainda não chegou às escolas do crime. Os pequenos marginais (no sentido de que roubam objetos de pequeno valor) têm como trunfo a imprevisibilidade, e agem rapidamente, sem que a sua vítima espere. A bicicleta só torna mais fácil tanto a aparição repentina como a fuga mais veloz. Deste modo, por que se vende a idéia de que os marginais estão se organizando para atacar sobre as duas rodas?

O mito da ‘gangue da bicicleta’ tem como objetivo legitimar a preocupação intensiva que os meios de comunicação do Rio de Janeiro têm com a classe média. Para a mídia, roubos são normais na Zona Oeste e Norte, mas não devem atravessar o túnel que as separa da área aristocrática carioca. Com a criação de um grupo como este, a preocupação abaliza a cobertura elitista dos jornais, pois a ‘gangue da bicicleta’ passa a ser mais um inimigo organizado contra a ordem pública. É o tal complexo terceiromundista de não ter a sua máfia própria. Assim como o crime não é organizado (o que ainda nos salva), a ‘gangue da bicicleta’ não existe.

A babá mais barata

O final trágico do caso em que a mulher morreu atropelada ao fugir dos assaltantes, contribui para a atenção ao fato. No entanto, é preocupante ver que o poder público adere ao clima de ‘guerra civil’ sobre pedais e aumenta o contingente nas ruas perto do Morro do Cantagalo em busca do tal grupo ciclista, enquanto assuntos mais sérios transcorrem por toda a cidade.

A cobertura jornalística deveria privilegiar o desenvolvimento da cidade, o que incluiu o combate ao crime, inclusive os pequenos delitos como este. No entanto, não se pode estimular a busca excessiva de tais delinqüentes, enquanto criminosos mais perigosos para a ordem urbana estão à solta na cidade. Os jornais não podem ser usados como armas para vingança da classe média contra quem tenta atacá-la.

É preocupante notar que o poder público acompanha esta ideologia e responde aos anseios histéricos da aristocracia carioca, abandonando as áreas mais carentes da cidade. Numa visão mercantilista, os jornais estariam cumprindo seu papel de defesa do interesse de seu mercado; cabe aos governantes não aceitar incondicionalmente esta pressão e tomar as atitudes cabíveis e possíveis, sem prejudicar o restante não-abastado da cidade.

Pedir tal cuidado em época de eleição, contudo, é demais para os nervos dos políticos. Todos querem um afago da imprensa, e não contrariar seus interesses é importante para apoios posteriores. Assim, os meios de comunicação mandam na direção de nossa cidade. A Zona Sul olha com medo os morros que a envolvem, e a mídia contrata a babá mais barata, a Polícia Militar.

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Estudante do 5° período de Jornalismo da ECO/UFRJ e bolsista Pibic do CNPq/UFRJ