Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A grande ausência da campanha eleitoral

Uma das marcas positivas das eleições de 2006 foram as diversas iniciativas de busca e estímulo ao voto consciente. Ainda que as pesquisas apontem para um baixo índice de renovação da Congresso Nacional – pelo menos metade dos deputados atuais se reelegerá e vários candidatos com vitória praticamente assegurada são envolvidos em acusações de conduta criminosa ou irregular (Diap) –, foram inúmeras as tentativas de levar o eleitorado a escolher melhor, com base em critérios éticos. Nesse sentido, a web tem sido de grande importância, transformando-se no espaço ideal de manifestação de opinião e debate de idéias.


Foi nesse contexto que o Instituto Patrícia Galvão, organização feminista voltada para a área de comunicação, tomou a si a tarefa de editar o blog Mulheres de Olho nas Eleições, que desde junho busca ser um espaço de informação e debate, no qual foram veiculadas notícias e discussões sobre políticas e demandas das mulheres no campo do atendimento integral à saúde. O objetivo central foi acompanhar e analisar as plataformas políticas e programas de ação dos principais partidos, relacionando-as com as reivindicações das mulheres.


A partir desse enfoque, o blog acompanhou o noticiário sobre eleições, os programas dos candidatos à presidência e os debates públicos. Num momento em que se faz necessária a renovação política de agendas e personagens, chama atenção que a pauta jornalística tenha se limitado a bater na mesma tecla: política econômica, agências reguladoras, carga tributária, governabilidade e alianças no segundo mandato, mantendo em segundo plano temas sociais como saúde, educação, meio ambiente, cultura, segurança pública.


Na Folha de S.Paulo, das 50 perguntas que seriam feitas ao candidato Lula caso ele houvesse aceitado o convite para ser sabatinado pelo jornal, não há referências a essas questões. No chamado pinga-fogo, o jornal perguntaria exclusivamente sobre o mensalão. O fenômeno se repetiu no Estado de S.Paulo: das perguntas feitas ao presidente, que também não atendeu ao convite para uma entrevista no jornal mas aceitou respondê-las por e-mail, as questões concentraram-se especialmente nas denúncias do mensalão e nas dificuldades que o PT teria pela frente em caso de um segundo mandato. A única pergunta que dizia respeito à agenda social tratou da relação do governo com o MST.


Debate estreito


Lula também recusou convite de O Globo para uma entrevista. O jornal veiculou página inteira com as perguntas que ficaram sem respostas. Entre as de interesse social estavam o não-cumprimento de metas no programa da reforma agrária, a política de cotas, o combate nacional ao narcotráfico e ao crime organizado. As outras diziam respeito aos temas da corrupção no PT e no governo, aspectos da política econômica, campanha e coligações partidárias.


A revista Época tentou inovar, recolhendo sugestões dos leitores para perguntas que os candidatos deveriam responder. Entraram em pauta temas como educação, cotas, meio ambiente, reforma trabalhista, segurança, previdência. Entre as 400 perguntas recebidas, a revista informa que selecionou 12 questões. No item Direitos da Mulher, a pergunta selecionada pela redação foi formulada pela jornalista Sonia Zaghetto. Embora a revista a identifique apenas como “leitora”, Sonia é assessora de comunicação social da Federação Espírita Brasileira (FEB).


Ora, há setores espíritas aliados da Igreja Católica no que diz respeito ao combate ao direito ao aborto. É espírita, por exemplo, o deputado Luiz Bassuma, líder da Frente Parlamentar em Defesa da Vida – Contra o Aborto, criada na Câmara dos Deputados em agosto de 2005. Entre julho e outubro de 2004, período em que esteve em vigor a liminar do ministro Marco Aurélio de Mello autorizando o aborto de fetos com anencefalia, espíritas se aliaram a católicos na promoção de uma série de debates sobre o tema nas universidades no Rio de Janeiro. No Rio de Janeiro, há centros espíritas que trabalham em conjunto com associações de mulheres e que formaram uma rede de informantes em hospitais: quando uma paciente chega para realizar um aborto em condições previstas na lei, as mulheres partem para um “aconselhamento”, tentando dissuadir a gestante de interromper a gravidez. Ao incluir apenas a pergunta de Sonia, a revista excluiu outras perspectivas sobre o assunto que também estão em jogo no debate eleitoral.


Cobertura unilateral


Mas foi na cobertura da Campanha Nacional pela Vida, idealizada pela Igreja Católica para evitar a eleição de candidatos e candidatas favoráveis ao projeto de descriminalização do aborto, que a imprensa mais demonstrou sua dificuldade em se alinhar aos interesses da sociedade. Sob o slogan “Por um Parlamento em defesa da vida. Vote em quem é contra a legalização do aborto!”, a Arquidiocese do Rio de Janeiro distribuiu 750 cartazes a suas mais de 200 paróquias.


Quando a Igreja Católica surgiu no debate como autora de cartazes em “defesa da vida”, foi tratada pela imprensa como um ator da sociedade expressando suas opiniões. Mas quando foi interpelada pela Justiça Eleitoral a não se manifestar em termos difamatórios contra a deputada Jandira Feghali, candidata ao Senado pelo Rio de Janeiro, a Arquidiocese reagiu como se tivesse sido invadida indevidamente. Essa contradição não foi devidamente explorada. Ou bem a igreja tem a última palavra sobre o assunto porque é uma “instituição sagrada” ou bem ela é apenas uma das expressões da sociedade civil que deve ser tratada em pé de igualdade com os demais atores e atrizes que se manifestam sobre o assunto. Ao admitir a primazia da posição católica, a imprensa contribui para a erosão da laicidade do Estado.


Essa viés se refletiu na cobertura da controvérsia. Os jornais abriram amplo espaço aos protestos da Arquidiocese, sem contemplar outras opiniões. Da mesma forma, as desinformações que constam da nota oficial da igreja não foram identificadas e analisadas. Esta nota afirma que a Igreja Católica não “foi admitida como participante da Comissão Tripartite que elaborou o projeto de lei para descriminalizar o aborto. O que aconteceu, de fato, foi que a Secretaria de Políticas para as Mulheres – com respaldo do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher –, ao definir a composição da comissão, estabeleceu como um dos critérios a amplitude da representatividade das instituições da sociedade civil que seriam incluídas. Ao discutir sobre a demanda da Igreja Católica, fez-se a opção pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic), que representa um leque mais amplo de forças religiosas e do qual a Igreja Católica é membro.


Pauta múltipla


Contudo, não houve acordo no próprio Conic quanto a que instituição faria esta representação, porque não há consenso interno em relação à criminalização do aborto, o que levou à decisão, pelo Conic, de não participar da Comissão Tripartite. Mas deve-se dizer que a posição da Igreja Católica em relação à matéria seria representada nos debates da comissão pela deputada federal Ângela Guadagnin, indicada para lá estar pelo então presidente da Câmara, o deputado católico Severino Cavalcanti.


De maneira geral, pode-se dizer que as eleições presidenciais foram marcadas pela referência excessiva às religiões. O candidato do PSDB, Geraldo Alckmin, é identificado com setores mais conservadores da Igreja Católica. Heloísa Helena, em seus argumentos contrários à união civil de homossexuais, evocou a fé cristã. Lula fez alianças com os pentecostais da Igreja Universal do Reino de Deus ou com setores da Igreja Católica.


Dito de outro modo, a ausência do candidato Lula nas entrevistas e nos debates não foi o único vazio desse processo eleitoral. Para além de escândalos e dossiês, existe no eleitorado um desejo legítimo de conhecer as idéias em disputa no debate democrático e não apenas em relação aos temas de sempre, como taxas de juros, pobreza, educação, saneamento ou política externa e fiscal. Sem dúvida esses são temas muito importantes, mas não são os únicos. Na falta de uma imprensa atenta e aberta a outras questões contemporâneas – que também são éticas e políticas –, as iniciativas na web vêm tentando suprir essa lacuna. Mas ainda estamos muito longe de uma cobertura de mídia que dê conta da multiplicidade de assuntos e temas relacionados aos direitos de cidadania no seu sentido mais amplo.


Um adendo


Exemplo dos excessos da Igreja Católica foi a utilização de mensagens instantâneas enviadas a aparelhos das operadoras Oi e Tim, no Rio de Janeiro. Na noite de sábado, os celulares foram bombardeados por textos que pediam voto contra Jandira: ‘Igreja e ONGs pedem que eleitores não votem em JF pois a candidata prega a não-existência de Deus e defende o aborto.’


Tendo como remetente a empresa CelNews, a propaganda foi enviada quando a campanha já estava oficialmente suspensa, configurando prática eleitoral ilegal. O resultado da poderosa campanha difamatória verificou-se nas urnas: a deputada foi derrotada por Francisco Dornelles, embora tenha liderado as pesquisas de opinião com folga até o último dia. No Globo de hoje, terça, dia 2, o arcebispo do Rio de Janeiro aparece na coluna do jornalista Ancelmo Gois como grande vitorioso da eleição.

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Jornalista, editora do blog Mulheres de Olho nas Eleições