Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A história mal-contada de um crime ambiental

Este texto visa a dar minha versão sobre meu afastamento temporário do jornal Diário do Grande ABC, para evitar, assim, possíveis especulações e mal-entendimentos. Serve também para mostrar como é cada vez mais difícil fazer jornalismo investigativo no Brasil, principalmente quando os veículos de comunicação dependem tanto de verbas publicitárias de governos para sobreviver.

Mas, principalmente, porque posso até vir a perder o emprego, mas não perco uma boa história. E, como diz um grande amigo jornalista, os bastidores dos fatos são sempre muito mais interessantes do que as notícias que acabam sendo publicadas.

Por isso, apesar de me encontrar afastado temporariamente, por motivos médicos, de meu trabalho como repórter especial no Diário do Grande ABC, continuo reunindo documentos e estudando o caso do Condomínio Barão de Mauá, maior crime ambiental e de saúde pública da história do Brasil. Escândalo que envolve, como sempre neste país, a explosiva combinação de empresas gananciosas, autoridades omissas e políticos corruptos, além da histórica lentidão e ineficiência da Justiça brasileira.

Depósito de lixo tóxico

Trabalhava como editor-executivo no Diário na época da explosão no Condomínio Barão de Mauá que, em abril de 2000, matou uma pessoa e feriu outra gravemente e cuja revelação pela imprensa foi marcada por uma série de contradições e jogos de empurra-empurra e escamoteação entre a Prefeitura de Mauá (SP), o governo do Estado (Cetesb), o governo federal (Ministério da Saúde) e as empresas envolvidas.

O condomínio de 54 prédios – espécie de minicidade onde moram 1.760 famílias (cerca de cinco mil pessoas) – foi construído no Parque São Vicente, em terreno de propriedade da Cofap, usado por 20 anos como lixão industrial, onde foi constatada a presença de 44 substâncias tóxicas, cancerígenas e com alto poder explosivo.

Antes de começar a trabalhar no caso novamente, em março deste ano, li mais de seis mil páginas de processos judiciais e pesquisas realizadas sobre esse crime por eminentes cientistas e pesquisadores (toxicologistas, oncologistas, biomédicos, engenheiros e especialistas em meio ambiente).

Apesar de fortes pressões de alguns envolvidos neste crime, como a Cetesb – companhia estatal que participou da aprovação da construção do condomínio, em 1994, apesar das várias multas aplicadas, nos últimos vinte anos, por depósito de lixo tóxico no local – e a multinacional Cofap-Magneti Marelli, consegui publicar algumas matérias sobre o assunto no próprio Diário do Grande ABC, alertando sobre os graves riscos de saúde que os moradores e seus familiares correm naquele condomínio, além da vizinhança da enorme gleba (150 mil metros quadrados) onde se construiu o Barão de Mauá.

Flagrante ilegalidade

Tive de enfrentar também a contrariedade do promotor Roberto Bodini, do Ministério Público de Mauá, que demonstrou, conforme depoimentos de moradores do Barão de Mauá, atitudes estranhas e contraditórias na condução do processo. Ora ele concordava que a demolição dos prédios era a melhor solução, ora aceitava as manobras protelatórias dos réus, apesar da sentença da Justiça, que acatou o pedido do Ministério Público e determinou a retirada e indenização dos moradores.

Revelei também, recentemente, com exclusividade, um esquema de contratos ilegais de financiamento de apartamentos desse mesmo condomínio, feitos pela Caixa Econômica Federal (CEF) com recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) – ou seja, com dinheiro dos trabalhadores brasileiros.

Esquema, aliás, que, segundo pude apurar até sair de licença médica, se repetiu por inúmeros outros condomínios de apartamentos construídos no Grande ABC e no interior do estado de São Paulo, lesando milhares de trabalhadores que usaram seus recursos do FGTS de anos de trabalho e ainda hoje não possuem o Habite-se nem a escritura desses imóveis.

Muitos deles não receberam até hoje o contrato assinado pela Caixa Econômica Federal, que retirou o dinheiro do FGTS de suas contas, repassou às construtoras em condições irregulares e os abandonou completamente. A Caixa chegou ao cúmulo de negativar nomes desses moradores em instituições como o Serasa e o SPC, apesar da flagrante ilegalidade dos negócios intermediados por essa instituição financeira pública.

Ganância e censura

Tive acesso a vários volumes do processo administrativo aberto pela Cetesb, envolvendo a Prefeitura de Mauá, a Cofap e as demais empresas que participaram desse crime – SQG Empreendimentos, Paulicoop e Construtora Soma. E a muitos outros documentos comprometedores que me foram entregues por alguns dos próprios réus na ação civil pública movida pelo Ministério Público Estadual e por moradores do condomínio.

Apesar de a Justiça já ter determinado a retirada e indenização das 1.760 famílias, além da demolição de todo o condomínio, muitas informações que revelam a gravidade ambiental e de saúde pública deste caso (que vem sendo abafado por um poderoso jogo de interesses políticos e econômicos) não foram ainda divulgadas pela imprensa em geral nem pelo Diário do Grande ABC.

Assim que for liberado de minha licença médica, pretendo publicar uma série de reportagens sobre o assunto. Planejo até a publicação de um livro sobre esse vergonhoso crime ambiental e de saúde pública, contando os sórdidos bastidores políticos deste caso. E revelar os dramas pessoais vividos por famílias – algumas das quais conheci durante esse trabalho – que lutaram toda uma vida para conquistar o sonho da casa própria, mas ficaram apenas com doenças e traumas provocados em suas crianças e familiares por esse pesadelo.

Ou seja, quero contar a história de mais um crime monstruoso cometido contra os cidadãos deste país movido pela ganância de algumas empresas em conluio com autoridades e políticos. Tudo isso tendo como cenário a censura imposta aos veículos de comunicação pela indústria de processos que se criou no Brasil contra jornais, revistas e profissionais de imprensa e o poder dos anúncios de prefeituras e dos governos estadual e federal.

Caso Celso Daniel

Quero ressaltar que, apesar de temporariamente afastado de minhas funções no Diário do Grande ABC, continuo recebendo documentos e informações sobre o caso Barão de Mauá pelo meu e-mail pessoal. Fatos que pretendo publicar em breve, se possível no próprio Diário, com o apoio dos atuais sócios – Ronan Maria Pinto, Maury Dotto e Evenson Dotto –, já que eles têm declarado insistentemente aos leitores e ao mercado anunciante que desejam recuperar a credibilidade perdida pelo jornal nos últimos anos.

Peço apenas um pouco de paciência porque meu médico indicou-me resguardo e me proibiu de trabalhar neste caso durante os próximos dois meses, levando em conta as enormes pressões, o estresse gerado pelas ameaças de alguns dos réus e o agressivo comportamento do próprio promotor responsável pela ação civil pública do Barão de Mauá.

Digo isso porque confio muito que momentos como este em que vivemos atualmente – de virada de página na História do país – não devem ser desperdiçados, apesar dos resultados finais nem sempre ficarem à altura das expectativas dos cidadãos que ainda têm um pouco de vergonha na cara.

Confio muito também na capacidade do médico Pedro Katz, que me assessorou e ajudou a superar outra grande crise no exercício desta penosa atividade de jornalista, quando investiguei, como editor-executivo no Diário do Grande ABC, o caso Celso Daniel – prefeito de Santo André assassinado em 2002, logo após assumir a coordenação política da campanha do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República e em meio a acusações de escândalos administrativos envolvendo contratos da Prefeitura de Santo André e empresários do setor de transportes e de lixo da cidade.

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Jornalista com passagens pela Editora Abril, Grupo Meio & Mensagem e Diário do Comércio e Indústria; editor-executivo do Diário do Grande ABC de 1990 a 2002, para onde voltou em 2006 como repórter especial