Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A história se faz pelo cruzamento do colonialismo e do imperialismo

Um dos mais importantes filmes de Glauber Rocha, Terra em transe (1967), possui narrativa construída em flashback, referindo-se a um tempo anterior ao momento da morte do poeta-jornalista Paulo Martins, tendo como pano de fundo o contexto sócio-histórico e político em torno do Golpe de 1964. Ao som de atabaques, a câmera sobrevoa o mar e adentra pelo interior quando surge o letreiro: “Eldorado, País interior, Atlântico”, situando geograficamente o enredo. Na província de Alecrim, o ministro militar comunica que o presidente exige a renúncia do governador Vieira em 24 horas. Paulo Martins chega ao palácio para tentar impedir, em vão, a renúncia de Vieira, com as palavras: “Agora, teremos que ir até o fim”, entregando-lhe uma arma. O político populista não a aceita, e pregoa: “O sangue das massas é sagrado”. Ao que o poeta-jornalista, marcado pela retórica revolucionária, retruca: “O sangue não tem importância, será o começo de nossa história.”

Passivamente, o governador Vieira passa a ditar a Sara sua carta de renúncia (enquanto o poeta os rodeia com arma em punho): “A contradição das forças que regem a nossa vida nos lançou nesse impasse político, tão comum àqueles que participam ativamente das grandes decisões, interessados no desenvolvimento econômico e social…”. O discurso do governador mostra que ele partilha da ideologia desenvolvimentista – tributária da noção iluminista de progresso e da ambição colonizadora – a qual o filme de Glauber Rocha passa a expor de modo crítico, atrelando-a ao populismo.

Em seguida, Sara e Paulo Martins encontram-se em um carro. Baleado, o poeta-jornalista dirige enquanto discursa: “Não se muda a história com lágrimas. Gente como nós, burgueses, fracos…” Quando Sara, na tentativa de salvar a vida do seu amado e companheiro de luta, pede-lhe para que pare com as suas loucuras, Paulo Martins, agonizante, responde: “A minha loucura é a minha consciência e ela está aqui, na hora da verdade, no momento da decisão, na luta, mesmo na certeza da morte.” Ferido, o poeta continua os seus protestos: “Não é possível essa festa de medalhas, este infeliz aparato de glórias, esta esperança dourada nos planaltos. Não é mais possível esta marcha de bandeiras com Guerra e Cristo na mesma posição.”

A morte de Paulo Martins ocorre em um lugar deserto, com a arma voltada para o céu. O local se refere a uma praia, alusão feita ao local onde ocorreu a Primeira Missa no Brasil. Sobrepõe-se a estas cenas o seguinte poema de Mário Faustino: “Não conseguiram firmar o nobre pacto/Entre o cosmo sangrento e a alma pura/gladiador defunto, mas intacto/(tanta violência mas tanta ternura)”. Importante capítulo da vida de Paulo Martins e da conjuntura sócio-política de Eldorado se desenrola quando o ditador Porfírio Diaz aparece, emblematicamente, ao lado de um padre, um índio ornamentado e um português com vestes do século 14. Alegoria que, no filme Terra em Transe, tem a função de trazer permanentemente à lembrança o fato de que a história brasileira se faz pelo cruzamento do colonialismo e do imperialismo, com o objetivo de expor a permanência da lógica dominante. Portanto, presente também no imaginário popular, os camponeses pobres e subalternizados que reverenciavam seus representantes políticos como heróis salvadores e acreditavam em suas promessas (“a inocência da fé e a impotência da fé”, nas palavras do poeta-jornalista).

A denúncia das ações repressivas

Refletindo sobre o regime tirânico expresso pelo seu amigo de juventude, o poeta-jornalista enfrenta uma crise intelectual transformadora: de vilão – ou seja: inimigo do povo – a herói salvador, quando propõe a Vieira pegar em armas para salvar o país do ditador Diaz. Paulo Martins também tenta o caminho do combatente jornalismo de oposição, por meio de um programa de TV viabilizado pelo império Fuentes, a maior organização econômica de Eldorado. Contudo, o empresário nacionalista Fuentes não foi páreo para destruir Diaz, que contou com a ajuda de empresários estadunidenses mais poderosos (representantes do imperialismo). Frente a esse conjunto de injustiças, Paulo Martins vai sacrificando sua vida na tentativa de salvar a população. Antes, porém, o poeta-jornalista não acreditava no povo, que, segundo suas palavras, saía correndo atrás do primeiro que lhe acenava com uma espada ou uma cruz.

Paulo Martins chegou a tapar a boca de um sindicalista, autor de um contundente discurso: “Eu sou o povo, um homem pobre, um operário, presidente do sindicato, estou na luta das classes, acho que está tudo errado.” O poeta-jornalista assim o censurou: “Estão vendo o que é o povo? Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado. Já pensaram um Jerônimo no poder?” Surge outro homem que tirou a mão de Paulo da boca de Jerônimo para proclamar: “Um momento, minha gente, eu vou falar agora, com licença dos doutores. Seu Jerônimo faz a política da gente, mas seu Jerônimo não é o povo, o povo sou eu, que tenho sete filhos e não tenho onde morar”. Este é jogado no chão, e todos gritam: “Extremista, extremista!” O manifestante acabou sendo assassinado na mesma hora por um dos capangas do governador Vieira. Segundo Paulo Martins, “só começamos a ver as coisas claramente pelas mãos da violência”. A violência para Glauber Rocha era impressionantemente reveladora, pois nela se encontra a denúncia nua e crua das ações repressivas de quem historicamente nos oprimiu e oprime. Quando o povo perde – e o cineasta acreditava que, no sistema capitalista, o povo invariavelmente perde – o vencedor se configura sempre como vilão e nunca como herói.

***

Marcos Fabrício Lopes da Silva é jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários