Brasil e Alemanha, 1965, amistoso no Maracanã. Pelé quebra a perna do zagueiro alemão Kiesman. Santos e Cruzeiro, 1968, Taça de Prata no Mineirão. Pelé quebra a perna do beque Procópio Cardoso, ex-Fluminense, na melhor fase de sua carreira, quando aguardava ser convocado para a seleção brasileira. Nunca mais jogou futebol. Brasil e Uruguai, Copa de 1970, no México. Pelé dá uma cotovelada no uruguaio Dagoberto Fontes, que havia pisado em sua mão no início do jogo. O lance da cotovelada foi tão bem feito que o juiz deu falta do zagueiro, e não de Pelé.
As imagens podem ser vistas no YouTube. O locutor diz: ‘Pelé sabe criar o momento certo para o revide.’ Tostão, rindo, afirma: ‘No momento propício, Pelé deu o troco.’ Wilson Piazza reforça: ‘Não é negócio de dar. Tem que saber fazer.’ E Paulo César Caju exagera: ‘Coisa linda, né?’
2008. Rio de Janeiro, Brasil. Os jogadores Jorge Henrique e Carlos Alberto, do Botafogo, recebem rigorosa punição do Supremo Tribunal de Justiça Desportiva (STJD). Um deles, Jorge Henrique, de 120 dias, por ter dado uma cotovelada num jogador do Grêmio em um lance bem menos violento do que o protagonizado pelo rei do Futebol. O outro, Carlos Alberto, por ter passado a mão no, digamos, fiofó do zagueiro gremista.
‘Rei da irreverência’
Duas épocas diferentes, jogadores totalmente diferentes. Pelé foi o maior jogador de futebol de todos os tempos, mas não levava desaforos para o vestiário. Em campo, apanhava mais do que massa de bolo. Jorge Henrique, esforçado atacante do Botafogo, é um dos jogadores que mais recebe faltas no Campeonato Brasileiro. Carlos Alberto, jogador problemático, que já passou por diversos clubes no Brasil e na Europa, está sempre se envolvendo em encrencas.
Na imprensa esportiva, nenhuma contextualização sobre o que acontecia antigamente e sobre o que acontece hoje no futebol. É óbvio que ninguém quer comparar Pelé com os jogadores botafoguenses. E nem é preciso ir tão longe nos tempos de Pelé. E a cotovelada do lateral Leonardo no jogador americano na Copa de 1994? Nenhum repórter lembrou? E os editores? Esqueceram também? O que aconteceu com Pelé e com o Leonardo? Foram suspensos?
O que aconteceria com o maior jogador de todos os tempos se jogasse futebol hoje e fosse julgado pelo STJD por reagir às agressões que costumava receber nos jogos? Seria afastado do futebol?
E a punição do Carlos Alberto? Por que punir o jogador por causa de uma irreverência? É só ver as imagens. O jogador do Grêmio até ri da ‘patolada’. O próprio Pelé era o ‘rei da irreverência’. Diz a lenda que num jogo contra o Bahia, na Fonte Nova, em 1970, sabendo que o zagueiro Sapatão, que jogou também no Flamengo, tinha a fama de violento, Pelé pediu para descobrirem os nomes dos pais do zagueiro, o nome da cidade em que nasceu etc. Ninguém entendeu nada.
Botafoguenses são ‘chorões’
Ao entrar em campo, com a multidão em volta, Pelé correu até o campo adversário e foi falar com zagueiro. ‘Sapatão! Eu sou seu fã! Queria você na seleção. Como está a dona Fulana? E seu pai, o Sicrano? Ô rapaz, você é ótimo, sempre quis te conhecer. Parabéns, viu?’ Sapatão ficou paralisado, assustado, não esperava aquilo, óbvio. O zagueiro, cheio de amores por Pelé, não encostou no rei durante o jogo. 3 a 0 para o Santos, três gols de Pelé, que nem sabia quem era Sapatão. Se Pelé jogasse no Botafogo e fosse filmado fazendo isso, seria suspenso por ‘atitude inconveniente’ pelo STJD?
O mesmo Pelé era mestre em cavar pênaltis. Dizem que em uma ocasião, o rei pegou no braço do jogador adversário, entrelaçou no seu próprio braço e saiu gritando ‘Seu juiz, seu juiz…’ O árbitro deu pênalti. Gol de Pelé. Em outro jogo, observando que o zagueiro ‘inimigo’ estava distraído, saiu correndo na direção do goleiro, que segurava firmemente a bola, gritando ‘Ele largou a bola, ele largou a bola’. O beque segurou a camisa do Pelé. Pênalti para o Santos, gol de Pelé. E o irreverente atacante Dé que, jogando pelo Bangu, enganou o goleiro vascaíno desviando a bola com uma pedra de gelo? A imprensa esportiva não lembra de nada disso? Só publica a notícia nua e crua da suspensão dos jogadores do Botafogo?
Depois, os botafoguenses que reclamam da Rede Globo e da ‘mídia flamenguista’ são chamados de ‘chorões’.
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Jornalista