Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A imprensa no martírio dos frades dominicanos

É comovente o filme Batismo de sangue, de Helvécio Ratton, realizado a partir do livro homônimo de Frei Betto sobre as prisões e torturas sofridas por quatro frades dominicanos que deram apoio a Carlos Marighela na sua luta contra o regime militar brasileiro. O filme reconstitui a emboscada e a execução de Marighela em São Paulo no dia 4 de novembro de 1969, possível pelas informações extraídas de Frei Ivo e Frei Fernando, que marcaram um encontro com o líder da Ação Libertadora Nacional (ALN), coagidos pelas torturas comandadas pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury na Operação Bandeirantes (OBAN), montada pelo Exército em junho de 1969.

O filme reconstitui também o sofrimento de Frei Tito, que jamais se recuperou dos traumas causados pela tortura e acabou se suicidando no ano de 1974 em L´Arbresle, no sul da França. Uma das cenas mais chocantes do filme ocorre quando Fleury, numa sessão de tortura, grita com o religioso e o acusa de traidor da igreja e traidor da pátria. Estas palavras perseguiriam Frei Tito até o seu último dia de vida, juntamente com as imagens do torturador Fleury e dos maus tratos sofridos na prisão.

Interessante observar que a utilização do termo traição, naquele momento de radicalização política, povoava a imaginação dos que apoiavam e dos que se opunham ao regime militar e, sobretudo, fazia parte do vocabulário dos representantes da imprensa que estimulavam os dirigentes políticos a um combate sem tréguas ao comunismo. De fato, dois dias após a morte de Marighela, O Globo publicou em 6 de novembro de 1969, na primeira página, o editorial intitulado ‘O beijo de Judas’. O jornal acusou Frei Ivo e Frei Fernando de duas traições.

Apelo ideológico

‘O primeiro beijo de Judas’ seria em relação à igreja, quando os religiosos abraçaram a filosofia do ódio ensinada por Lênin e Marx, em detrimento do Evangelho cristão. Ao aderirem ao comunismo, Frei Ivo e Frei Fernando teriam repetido o gesto de Iscariotes. Esvaziados de moral cristã, os frades teriam se comprometido com o amoralismo marxista-leninista. Além de rasgarem os votos que fizeram diante de Deus e perderem a resistência moral, os religiosos, segundo o jornal, traíram também os votos de fidelidade à própria doutrina da violência, pois delataram Marighela à polícia com uma meticulosa proficiência. Este seria o segundo beijo à maneira de Judas.

Para O Globo, os padres de passeata, como foram chamados Frei Ivo e Frei Fernando, seguiram o caminho da traição a todos os valores, não merecendo confiança da igreja nem do comunismo, já que eles teriam armado a cilada em que tombou o líder do terror. Além de encarnarem um papel devastador desempenhado em vários setores da igreja pelas alas renovadoras, os frades confrontaram as advertências de Paulo VI, segundo as quais ‘nada dentro da igreja deve ser arbitrário, tumultuoso ou revolucionário’.

Neste editorial e em outro, intitulado ‘A firmeza do pastor’ e publicado na primeira página, em 19 de novembro de 1969, no qual pede à hierarquia católica uma atitude mais firme para que outros casos, como o dos frades, não viessem a acontecer, Frei Ivo e Frei Fernando foram classificados pelo jornal O Globo de delinqüentes, cúmplices de terroristas, beijoqueiros da traição, covardes, infelizes e ovelhas tresmalhadas.

O importante aqui é perceber a estratégia discursiva utilizada no texto jornalístico. O Globo desenvolveu a idéia de que os frades dominicanos perderam a identidade como religiosos comprometidos com a fé cristã uma vez que eles incorporaram o espírito comunista, cujos significados foram objeto de permanentes elaborações ao longo da história do país. O comunismo deu substância ao apelo ideológico em torno do qual se uniriam representantes da imprensa e militares para frear o processo político democrático e justificar o golpe de Estado em 1964.

Sem limites

Em voga nas décadas de 1950 e 60 e durante o regime autoritário, o discurso anticomunista faz parte do imaginário popular e das elites conservadoras, considerando seus valores, instituições e práticas políticas. O comunismo está associado aos horrores soviéticos, à experiência política de uma sociedade ditatorial destituída de valores, sobretudo os cristãos. É apresentado como uma ideologia totalitária que prega uma atitude de permanente violência e subversão da ordem social. Ser comunista é ocupar um lugar de inimigo social. São os inimigos da ordem, das instituições e da família brasileira. Em suma, são os inimigos da Pátria, os inimigos do Brasil [os significados de comunismo e comunista foram extraídos do estudo de Bethânia Mariani, O PCB e a imprensa.Revan, UNICAMP, 1998].

A idéia, muito difundida durante a Guerra Fria, de que o Brasil enfrentava um inimigo interno representado pela ideologia comunista é central na Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento, formulada pela Escola Superior de Guerra. De conteúdo conservador, a doutrina não apenas justificava a tutela da sociedade pelo argumento de que sua natureza conflituosa confrontava o projeto de elevar o Brasil ao patamar de potência capitalista ocidental, mas criava no contexto de uma suposta guerra revolucionária comunista a base comum para a definição dos critérios sobre os quais foram tomadas as decisões dos governos militares. Portanto, o conceito de segurança nacional sob o qual se estruturou o Estado após 1964 exigiu a montagem de um vasto aparato repressivo para conter a expansão do inimigo interno que, na concepção autoritária, podia se manifestar em qualquer tipo de contestação ao regime, criando obstáculos às metas preconizadas pelos dirigentes.

A violência praticada pelos órgãos repressivos do Estado pós-64 sempre foi cultivada pelos dirigentes militares, situando-se no centro da estratégia para consolidar o autoritarismo, cujo propósito era desmobilizar e despolitizar a sociedade. Todavia, a violência atingiu formas extremas de ilegalidade, chegando a adquirir traços que a aproximasse do terrorismo de Estado, como ocorreu entre 1969 e 1973.

O Estado expandiu o perfil policial no controle da sociedade e os indivíduos perderam por completo as garantias legais, ficando desprotegidos ante as ameaças dos aparatos de segurança que não conheciam limites para as suas operações. Segundo o Comitê Internacional de Juristas, havia na época pelo menos 12.000 presos políticos no Brasil [Maria Helena Moreira Alves, Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Vozes, Petrópolis, 1989, p.166]. O Grupo Tortura Nunca Mais registra em seu site que o número de militantes políticos mortos e desaparecidos durante o regime militar foi de 180. Entre 1964 e 1968 foi de 27; Entre 1969 e 1973, de 139; e entre 1975 e 1983, de 14. Se as informações procedem, isto significa que no período após o AI-5 até o fim do governo Médici ocorreram em torno de 75% das mortes e desaparecimentos dos opositores do regime.

‘Rigorosa sindicância’

As denúncias de torturas em presos políticos praticadas pelos aparatos de segurança existiam desde a instituição do regime militar em 1964. Mas elas se intensificaram após 1968, com o AI-5. Durante todo o período do governo Médici, relatos sobre pessoas atingidas pela repressão circularam entre famílias, estudantes, órgãos da igreja e jurídicos, entidades jornalísitcas e, sobretudo, nas redações dos jornais brasileiros.

O historiador e brasilianista James Green [entrevista ao caderno ‘Mais!’, da Folha de S.Paulo, 6 de junho de 2004] afirma que o New York Times, o Washington Post e outros importantes jornais dos EUA promoveram uma pequena campanha inicial após o AI-5, denunciando as medidas repressivas. Embora os jornais americanos criticassem as medidas negativas do AI 5, não houve menção de tortura. As primeiras referências sobre tortura, segundo o historiador, ocorreram logo após o seqüestro do embaixador americano Charles Elbrick, no Rio de Janeiro.

O fato de os presos políticos, que foram trocados pelo embaixador, irem para o México possibilitou que eles denunciassem a tortura. Os jornais americanos repercutiram as denúncias, repetindo e publicando as declarações dos exilados brasileiros e o New York Times deu à reportagem o título de ‘Supostamente torturados’. Esta foi a primeira menção de que os presos políticos foram torturados e isso ocorreu, segundo o historiador, em setembro de 1969.

As denúncias de torturas em presos políticos divulgadas pela imprensa internacional repercutiram no Brasil e o tema se tornou de domínio público nos meses de novembro e dezembro de 1969, quando os jornais pediram que o governo apurasse os fatos e tomasse as providências necessárias se eles fossem verdadeiros. Nesse ambiente, poucos dias após a morte de Marighela, quando os frades dominicanos se encontravam na prisão, O Globo publicou na primeira página, em 22 de novembro de 1969, o editorial intitulado ‘Torturas?’, no qual investiu contra a imprensa internacional, afirmando que jornais franceses, alemães, belgas, austríacos, ingleses, holandeses, italianos estavam publicando freqüentemente matérias fantasiosas a respeito de torturas no Brasil.

O jornal lembrou que denúncias desse tipo já tinham ocorrido recentemente, como no governo Castelo Branco, quando foram divulgadas informações a respeito de maus tratos sofridos por presos políticos em Pernambuco. O general Ernesto Geisel é citado como o responsável por uma rigorosa sindicância naquele estado, apurando que nenhuma violência ocorrera. Referindo-se ao seqüestro do embaixador Elbrick, que possibilitou a libertação de vários militantes políticos, o editorial argumentou que alguns desses presos dados como torturados e incapacitados estavam em Cuba e mostravam excelentes condições físicas. O Globo pediu que o governo apurasse as denúncias para destruir as mentiras divulgadas no exterior contra o regime brasileiro.

Manifesto político

Como explicar o editorial de O Globo, considerando a responsabilidade social da imprensa com a informação? A esta altura dos acontecimentos, várias fontes já tinham possibilitado a O Globo e a outros importantes jornais do país terem pleno conhecimento de que torturas em presos políticos ocorriam no Brasil, como continuaram sabendo durante todo o governo Médici, pois a violência do aparato repressivo se intensificou até os grupos de esquerda armada serem dizimados.

Vale observar que O Globo não legitimou o debate público sobre a tortura durante o governo Médici, diferentemente de Geisel que, após deixar a presidência da República, prestou um depoimento aos historiadores do CPDOC no qual a admitiu como um meio necessário para a obtenção de confissões. O jornal, que se dizia comprometido com o Estado de Direito, simplesmente negou a existência de torturas no Brasil. Por outro lado, não há como atribuir à censura a responsabilidade por esse conteúdo editorial. A censura tinha o objetivo de conter a circulação de informações que pudessem ter um teor crítico ao regime.

O jornal disse claramente que a imprensa internacional estava promovendo uma campanha de difamação do Brasil e que as denúncias de existência de torturas eram mentirosas. Por fim, o editorial foi concluído com a defesa do regime militar, pois este, segundo O Globo, ‘salvou o país dos mais terríveis torturadores que a história conheceu’, os quais no texto ganham o significado de comunistas e totalitários de esquerda.

Somente a adesão total ao regime pode explicar a tentativa de O Globo de negar no editorial a violência praticada pelos órgãos de segurança no Brasil, sobretudo durante o governo Médici. Se a tortura não podia ser justificada, ela podia ser negada de modo a não permitir que nenhum questionamento pusesse em risco a unidade obtida após o AI-5 entre as forças sociais e políticas que compunham o então sistema de poder dominante.

Não foi outro o motivo do editorial de O Globo intitulado ‘Unam-se todos’, publicado na primeira página, em 5 de setembro de 1969, um dia após o seqüestro do embaixador americano no Rio de Janeiro, quando o I Exército buscava localizar o cativeiro do diplomata e o governo se preparava para responder às exigências feitas pela ALN e pelo Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) de libertação de 15 presos políticos e divulgação através dos meios de comunicação de um manifesto político dessas organizações.

Confiança traída

O Globo afirmou que o Brasil estaria sendo governado pelos correligionários dos seqüestradores do embaixador Elbrick se não tivesse havido o 31 de março. Alertou que o Brasil desunido cairia na armadilha que o terrorismo armara. O editorial argumentou que a derrota dos terríveis inimigos terroristas só seria possível com a completa união entre povo e governo e defendeu que a palavra de ordem deveria ser a união entre civis e militares, sem dissidências, sem desentendimentos.

Dessa forma, vivemos um dos momentos mais sombrios da história republicana. A contrapartida a um Estado autoritário foi a submissão de alguns setores da sociedade, em particular os representantes da imprensa que internalizaram plenamente as diretrizes de um regime cuja principal base de apoio, sobretudo durante o governo Médici, se encontrava no aparato repressivo comandado pelas facções extremistas de direita, comprometidas com métodos fascistas de intimidação política.

Os representantes da imprensa brasileira que legitimaram o regime e acobertaram as violências praticadas no interior das instituições militares traíram a confiança do público. Este sim é o verdadeiro sentido do beijo de Judas.

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Professor da Universidade Federal Fluminense e doutor em História Social