O Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (2/4) pela TV Brasil levou ao ar um especial sobre a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial, que em 2012 completou 70 anos. Entre 1939 e 1945, mais de 60 milhões de pessoas morreram em batalhas travadas na Europa, na Rússia, no Norte da África e na Ásia. Nos bastidores da guerra, uma ação silenciosa da Alemanha buscava conquistar o apoio do povo brasileiro através dos meios de comunicação. O OI na TV exibiu reportagens sobre o contexto histórico do período, a campanha dos pracinhas na Itália, o cotidiano dos brasileiros durante a guerra, o impacto do afundamento dos navios na população e como as novas gerações perpetuam a memória da guerra.
Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro o historiador Orlando de Barros, professor decano do Instituto de Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor pela Universidade de São Paulo (USP), Barros é autor de livros e ensaios sobre História do Brasil, principalmente sobre o período Vargas. Escreveu um ensaio a respeito dos últimos meses de vida do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), o órgão publicitário oficial criado no Estado Novo.
Em editorial, Dines sublinhou a importância da entrada do Brasil na guerra para a história do país: “Nada é mais parecido com o presente do que o passado. Grande parte dos erros políticos, econômicos e estratégicos cometidos hoje podem ser claramente atribuídos ao desconhecimento do passado. É o preço de delegarmos apenas aos historiadores a tarefa de estudar a História. Um dos períodos cruciais para entender o Brasil contemporâneo foi a participação do país na Segunda Guerra Mundial. A efeméride já passou, poucos deram-se ao trabalho de lembrar o que aconteceu em agosto de 1942 – há sete décadas – quando uma ditadura de direita, o Estado Novo, proclamado por Getúlio Vargas, juntou-se a um bloco global de centro-esquerda e cruzou o Atlântico para combater um eixo de extrema direita” [ver íntegra abaixo].
Na corda bamba
O professor Luis Edmundo de S. Moraes, historiador da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFFRJ), explicou que naquele período o Brasil era um país dependente, mas transitava no cenário internacional com uma certa autonomia. “Era um país grande e muito pouco potente como ator no cenário internacional. E, portanto, opta por manter relações positivas onde ele pode encontrar frutos dessas relações. Nesse caso, [o Brasil] mantém relações positivas com a Alemanha e com os Estados Unidos, porque isso em alguma medida favorece as suas relações comerciais e dá a ele um certo jogo de cintura”. Com essa política de não se alinhar de forma absoluta aos Estados Unidos ou à Alemanha, o país garantiu margem de manobra com as duas potências.
A situação só mudaria em janeiro de 1942, quando o Brasil rompe relações diplomáticas com as potências do Eixo logo após a Conferência dos Chanceleres. O encontro, realizado no Rio de Janeiro, reuniu os ministros das Relações Exteriores das repúblicas americanas e foi convocado pelos Estados Unidos logo após o ataque a Pearl Harbor (dezembro de 1941). “Essa conferência é um tipo de mecanismo de política internacional no continente americano que foi acionado a partir da Conferência de Lima, em função da necessidade de dar respostas mais ágeis a situações percebidas como de crise internacionais e, obviamente, às expectativas hegemônicas dos EUA”, explicou Luis Edmundo. O historiador Fábio Koifman, professor da UFRRJ, registrou que o Brasil, naquele momento, absteve-se de declarar guerra ao Eixo.
No debate no estúdio, Dines relembrou que a Alemanha tentou envolver o Brasil mas, tradicionalmente, o país identificava-se mais com a Inglaterra. Nos anos 1920, o país tinha fortes relações comerciais com os Estados Unidos. O professor Orlando de Barros ressaltou que em 1928, às vésperas da Grande Depressão, a economia brasileira estava muito mais voltada para os Estados Unidos do que para a Inglaterra. Já a Alemanha havia passado por grandes dificuldades e precisava encontrar parceiros importantes. A parceria com o Brasil se fortaleceu com a crise de 1929. “Em 1938, o comércio bilateral do Brasil com a Alemanha superou o comércio com os Estados Unidos”, disse o professor. O fato acendeu a luz vermelha em Washington, que intensificou as relações com o Brasil.
Parceiro disputado
Na década de 1930, o Brasil desponta como importante fornecedor de matéria-prima para o esforço de guerra alemão. O III Reich monta uma poderosa máquina de propaganda na embaixada do Rio de Janeiro para conquistar a simpatia dos brasileiros. Um esquema de repasse de dinheiro garante a publicação de material favorável ao nazismo. O professor Francisco Carlos Teixeira, da Universidade Federal do Rio da Janeiro (UFRJ), revelou que os alemães usavam as linhas férreas alemãs, a companhia aérea Condor e, algumas vezes, a Varig para fazer esses pagamentos. As agências Transocean e Havas abasteciam os veículos com notícias que mostravam a Alemanha como modelo de progresso e atacavam os Estados Unidos e a Inglaterra. “Esse material tinha notícias nas quais os ingleses e os americanos apareciam como os culpados, os malfeitores, e os alemães eram vitimizados”, disse o professor.
A rede de propaganda comprou uma sala de cinema no Rio de Janeiro, o Cine Broadway, para exibir filmes e cinejornais do III Reich. Quatorze estações de rádio brasileiras foram subvencionadas pelo governo alemão. A Rádio Ipanema chegou a ser totalmente controlada pela embaixada daquele país. “A rádio Jornal do Brasil, a rádio Tamoyo e a rádio Mundial passam a receber, secretamente, fundos do Ministério da Propaganda e da Gestapo, a polícia secreta alemã, para os seus secretários e diretores. Não se tratava de manter as rádios, as rádios eram autossuficientes. Tratava-se de convencer esses dirigentes para que eles recebessem material pró-alemão e colocassem no ar”, disse Teixeira.
O vespertino Meio-Dia tornou-se instrumento do regime de nazista. Fundado em 1939, o jornal nasceu como um veículo moderno e independente, mas a direção não resistiu ao esquema de financiamento. O jornal se transformou em um entusiasmado propagandista de Hitler e das excelências de seu regime. Seu proprietário, o empresário Joaquim Inojosa, foi um dos expoentes da vanguarda intelectual do Recife. O jornalista Geneton Moraes Neto pesquisou a história do jornal para o livro Hitler-Stalin: O Pacto Maldito, que escreveu em parceira com o consagrado jornalista Joel Silveira. Geneton explicou que nos diários de Inojosa está claro que houve uma jogada de oportunismo:
“Ele identificou que uma parte da imprensa já apoiava a França e a Inglaterra, e que havia espaço para um jornal que se identificasse com a Alemanha. Eu entrevistei o ex-secretário de redação do Meio-Dia, Manoel Gomes Maranhão. Ele me disse o seguinte: ‘Não sei se devo dizer, mas a Transocean – que era uma empresa alemã – fornecia material e pagava para a gente publicar. Toda sexta-feira era uma agonia, o pessoal do jornal querendo saber se iria receber os ‘vales’ da semana’”, contou o jornalista.
Em agosto de 1939, o mundo assistiu estarrecido à assinatura de um pacto de não-agressão entre a Alemanha nazista e a Rússia comunista. Com a aliança, a ideologia de Hitler dominou as páginas do Meio-Dia.“O jornal festejou a assinatura do pacto, está aqui uma das manchetes: ‘Ampla e firme colaboração teuto-soviética!’, com exclamação na capa. E acrescenta: ‘Moscou engalanada’, ‘A Alemanha viverá e vencerá’”, sublinhou Geneton.
Imprensa com a ficha-suja
O Meio-Dia lançou um caderno de cultura em 1940 e convidou o escritor Jorge Amado para editar a seção. O insólito pacto Hitler-Stalin gerou um racha na esquerda brasileira. “Eu cheguei a entrevistar Jorge Amado sobre essa colaboração. Ele disse que só editou uma página, mas alguém editou uma foto de um soldado alemão e ele disse que deixou o jornal imediatamente. Mas eu fui aos arquivos da Biblioteca Nacional e não foi exatamente assim que aconteceu. Jorge Amado editou várias páginas do jornal nos meses seguintes, pelo menos a assinatura de Jorge Amado aparece lá”, afirmou Geneton. O escritor convidou o então jovem repórter Joel Silveira para colaborar com o Meio-Dia.
Geneton explicou ainda que naquela época as ordens de Moscou não eram discutidas pelos integrantes do Partido Comunista. “Eu perguntei exatamente isso ao Jorge Amado, ele disse que não foram ordens do partido. Já o Joel Silveira disse que, claro, não foi uma ordem escrita, mas que ele identificava que essa colaboração foi feita pelos intelectuais em nome desse pacto. Joel dizia que a história do Meio-Dia era uma espinha na garganta que ele tinha porque achava que esse pacto era o que ele chamava de ‘uma patifaria’”, comentou Geneton. O jornalista esclareceu que os intelectuais escreviam apenas no caderno de cultura e que esta colaboração ocorreu no início da guerra, quando os horrores cometidos pelos nazistas nos campos de concentração ainda não eram conhecidos.
Um dos mais importantes jornais dos anos 1940, a Gazeta de Notícias também foi simpatizante da causa nazista e recebia material da Transocean. Entre os colaboradores do jornal está o poeta germanófilo e integralista Gerardo Mello Mourão. Em janeiro de 1942, antes de o Brasil declarar guerra, o então colunista e redator da Gazeta foi preso sob a acusação de colaborar com a Alemanha nazista. Pouco antes, Mourão levou uma encomenda para alemães que estavam na Argentina e intermediou outras remessas de material para o grupo. Em outubro, com o Brasil já na guerra, o presidente Getúlio Vargas baixou um decreto enquadrando espionagem como crime de segurança nacional. A medida era retroativa a janeiro daquele ano. Gerardo Mello Mourão foi condenado à pena máxima de 30 anos de prisão. Em 1946, com a redemocratização, o Supremo Tribunal Federal declarou o processo nulo.
O Diário de Notícias da Bahia também foi cooptado pela embaixada alemã. Fundado no século 19, o jornal passou a ser apoiado por grandes empresas alemães sediadas na Bahia. O diário encontrava respaldo nas elites locais e foi impulsionado pelo estreitamento das relações comerciais com a Alemanha. O historiador José Carlos Peixoto explicou que a Bahia sediava uma grande quantidade de capitais alemães e o jornal tinha o intento de captar a simpatia dos empresários alemães. Por isso, seguiu a risca as diretrizes de propaganda do Partido Nazista. “O jornal se torna não apenas um espaço de comentários políticos pró-Alemanha, mas também um panfleto que vai dar chamadas de capas seguidas com uma linha editorial favoravel, explicitamente, à Alemanha nazista”, disse o historiador.
Propaganda no éter
Com a entrada do Brasil na guerra, em agosto de 1942, o III Reich precisou mudar a sua estratégia para levar a palavra de Hitler aos brasileiros. Em 1943, o governo alemão montou um departamento dentro da poderosa Rádio Berlim para transmitir diretamente para o Brasil, em português. “Eles têm que organizar uma grade que atendesse a um público que eles nunca tinham efetivamente trabalhado. Então, eles diziam: ‘música tem que ser ligeira, tem que ser opereta e coisa muito popular, senão eles perdem a paciência. Tem que ter um programa médico porque eles adoram coisas sobre medicina, inovações, tratamento. Um programa de receitas culinárias e comidas e, enfim, um jornal. Mas o jornal é bom ficar para o fim do dia, porque o brasileiro é preguiçoso e não acorda cedo’”, relatou o historiador Francisco Carlos Teixeira.
A imprensa descobriu a identidade dos oito brasileiros contratados pela rádio. No calor da guerra, a mídia encabeçou uma campanha pela punição dos traidores e promoveu uma devassa em suas vidas. Três deles eram brasileiros natos. “Dois, particularmente, chamaram a atenção da documentação da Gestapo. Um brasileiro, funcionário público, que migra para a Alemanha voluntariamente e se oferece para ser locutor na rádio de Berlim falando português contra o governo Vargas e contra a aliança do Brasil com os EUA, dizendo que o governo Vargas era traidor e estava vendendo o Brasil aos americanos”, disse Teixeira. Marco Antônio Cunha é encarregado de traduzir os comunicados do Alto Comando Alemão e o noticiário político para o português. Sua mulher, Nair, é datilógrafa na emissora. Assustada com a guerra, ela decide voltar para o Brasil, mas é presa no caminho. Pressionada, revela os detalhes da trama e é internada em um hospital psiquiátrico.
“Achamos, não no arquivo da Gestapo, mas no arquivo do Oberkommando Wehrmacht,o Estado Maior das forças armadas alemãs, uma documentação na qual a Wehrmacht acusaMarco Antônio Cunha de ser um agente americano e que teria se oferecido para trabalhar na rádio alemã para ter maior acesso, literalmente, no coração do Reich. Isso, naquele momento, por causa da tecnologia, era até importante para marcar os pontos de bombardeio. Então, aqui o mistério se estabelece”, disse o historiador.
A jovem musicista baiana Lourdes Lage ganhou uma bolsa de estudos e partiu para a Alemanha em 1939. “Poucos meses depois ela aparece trabalhando na mesma rádio alemã. Enquanto Marco Antônio fazia os discursos, ela tocava músicas brasileiras ao fundo, no piano, dando uma sensação de familiaridade, de ambiência, como se a rádio estivesse transmitindo do próprio Brasil ou de um ambiente muito brasileiro”, relatou Francisco Carlos. Semanas antes de a imprensa descobrir a identidade da pianista, ela foi acusada de ser professora de português de um grupo de espionagem alemão.
O professor Orlando de Barros comentou outro caso da participação alemã na mídia brasileira: o da jovem paulista Margarida Hirschman. Margarida viajou com o pai para a Alemanha, onde teria sido convencida pela Gestapo a trabalhar na divulgação da ideologia nazista no Brasil. “Ela trabalhou na Alemanha por alguns anos e quando houve a intervenção da FEB na Itália, em 1943, ela foi transferida para uma estação de rádio e continuou a fazer as irradiações em português para as tropas. E o curioso é que as tropas ouviam a Margarida Hirschman”, relatou o professor. Ao final da guerra, a jovem foi capturada e processada no Brasil. “Rubem Braga faz uma defesa desabrida dela na imprensa porque ele achava que o crime dela foi muito pequeno se comparado com outros, inclusive o Mourão”, comentou Orlando de Barros.
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A guerra pela democracia
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 678, exibido em 2/4/2013
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
Nada é mais parecido com o presente do que o passado. Grande parte dos erros políticos, econômicos e estratégicos cometidos hoje podem ser claramente atribuídos ao desconhecimento do passado. É o preço de delegarmos apenas aos historiadores a tarefa de estudar a História.
Um dos períodos cruciais para entender o Brasil contemporâneo foi a participação do país na Segunda Guerra Mundial. A efeméride já passou, poucos deram-se ao trabalho de lembrar o que aconteceu em agosto de 1942 – há sete décadas – quando uma ditadura de direita, o Estado Novo, proclamado por Getúlio Vargas, juntou-se a um bloco global de centro-esquerda e cruzou o Atlântico para combater um eixo de extrema direita.
O fim da Segunda Guerra Mundial faz parte da história do Brasil. Era o fim da Terceira República e sonhava-se que seria a consolidação definitiva da nossa democracia.
Não foi. Disparado o último tiro na Europa, uma outra guerra iniciava-se no mundo: a Guerra Fria, que atrasou a nossa democracia em algumas décadas.
Esta edição do Observatório da Imprensa pretende lembrar que o convívio com o passado pode ser mais útil do que o culto ao futurismo.