Algo de efetivamente apaixonante na atividade jornalística é saber que, com o que se escreve sobre o acompanhamento diário dos acontecimentos da vida, pode-se produzir progressivo grau de envolvimento das pessoas (público-leitor) com o sentido da vida corrente.
Se equívoco há na imprensa dominante no Brasil das últimas décadas é justamente o fato de ela, em nome da “objetividade da informação” e da crença no princípio da “neutralidade” (ou no do mito da “imparcialidade”), haver cristalizado um “formato” cujo perfil parece excluir o leitor de uma relação mais profunda com os dramas e as tramas do cotidiano. Como conseqüência, as empresas de comunicação vivem em lamúrias quanto à minguada fatia do “produto” que vendem. Em nenhum momento, porém, as mesmas empresas se perguntam a respeito das causas reais. Uma delas, ao menos, se refere ao “conteúdo” que os veículos de informação oferecem.
O formato da imprensa brasileira, impregnada das duas primeiras correntes teóricas dominantes nas décadas iniciais do século passado (teoria do efeito e teoria funcionalista), fez-se refém do imediatismo, deixando à margem a colaboração da terceira corrente: a teoria crítica. Se as duas primeiras são mais confortáveis, sob o aspecto dos interesses comerciais mais urgentes, não quer dizer que, no médio e longo prazos, a terceira não seja a mais rentável no tocante à formação e, principalmente, ampliação do público-leitor.
É possível que um dia a “ficha” caia no lugar certo e então, quem sabe, algum órgão de comunicação testará diferentes propostas. O que não parece ser o atalho mais promissor é o atual. No presente paradigma reina, soberanamente, o primado da “informação”. Todavia, o perfil dominante da população brasileira é definido por acentuada carência de “formação”. O que quer dizer, portanto, oferecer “informação” a um contingente populacional que, majoritariamente, acusa “deformações”?
Contribuição efetiva
A percepção a respeito desse fato parece acusar a existência de um círculo vicioso no qual as duas pontas (imprensa e público) se encontram num acordo de mútuo conservadorismo. De um lado, a imprensa não ousa com receio de perder; de outro, o público dá ares de resignação. E assim se vai prolongando indefinidamente um “contrato” no qual ambas as partes fingem que ninguém perde.
Quando, raramente, a imprensa possibilita polêmica, eis que vem à tona, como lava indômita de um vulcão, a retórica – mais tangida pelo emocional que pela inteligência – a revelar uma direita raivosa contra uma esquerda rancorosa, modelo no qual fica a sensação de que um deseja o extermínio do outro. Daí, o que seria a possibilidade rica para o vigor argumentativo transforma-se em circo de horrores cujo vencedor é aquele que demonstrar mais potência destrutiva em desqualificar o oponente. Nessa binaridade, apenas se fortalece a razão dogmática e o que se enfraquece é a eficácia comunicativa em cujas bases se aloca o apreço pela democracia.
Na efetiva prática democrática, deve vigorar o respeito à diferença mesmo quando esta possa estar associada ao “erro”, ao “equívoco” ou à “incompreensão”. Quando, porém, em nome de um dos três, se proclama a ira, o que se afirma é a falência da democracia e a entronização do patrulhamento, tanto nas hostes da direita quanto nos redutos da esquerda. Se a imprensa brasileira, portanto, tiver algum interesse em prestar efetiva contribuição para a expansão de massa crítica, o caminho que se oferece é um tipo de jornalismo comprometido com os fundamentos da teoria crítica.
O perfil crítico de CartaCapital
Com o intuito de melhor ilustrar o teor dos parágrafos anteriores, vale assinalar a edição de nº 412 (de 27/9/2006) da revista CartaCapital. Não apenas por uma pauta de fina sintonia com os principais temas mais recentes como também (e sobretudo) pelo encaminhamento jornalístico destinado aos temas, a revista conferiu expressivo respeito ao leitor.
Com competência e equilíbrio, CartaCapital ofereceu aos leitores rentável mapeamento argumentativo e informativo, seja em relação à política local nas matérias referentes ao “escândalo do dossiê” e a pesquisas eleitorais, seja em âmbito internacional ao abordar o rumoroso episódio em torno do depoimento do papa. Sem excessos, reportagens esclarecedoras pontuaram variadas angulações com as quais o leitor está efetivamente apto a firmar suas posições a respeito.
Textos primorosos, quer pelo conteúdo, quer pela elegância no estilo redacional, compõem o número, com destaque às matérias assinadas por Leonardo Fortes e Sergio Lírio (“Dossiê bumerangue”), Maurício Dias (“Ataque frustrado”), Marcos Coimbra (“Teses equivocadas sobre o voto em Lula”), Antonio Luiz M. C. Costa (“De volta às cruzadas”), Walter Fanganiello Maierovitch (“O papa e o professor”), Gianni Carta (“Convergência para o centro”), além de Jason Burke (“Libération: mudar ou desaparecer”), dentre outras.
Como exemplo de painel informativo, a edição citada igualmente demonstra plena eficiência jornalística, ao compactar pequenos textos na seção “A Semana”. Nela figuram, como mosaico, variados temas: “Crise do dossiê: os petistas do senhor Vedoin”, “Espionagem: Provera, demitido e investigado” e “Mundo fashion: caça às magras da passarela”, encerrando com “Tailândia: esse é um país que vai para trás” e “Bolívia: mais perto de um acordo”.
Deixando claro que nenhum interesse (ou vínculo) há entre o articulista e o produto aqui citado, fica a ilustração como mera referência a um tipo de imprensa cujo propósito é o de contemplar o leitor com substancialidade, oferecendo-lhe dados com os quais o leitor tanto pode dialogar quanto, com eles, se situar frente às ocorrências da vida.
Quando o “Mais!” é menos
Na linha oposta da CartaCapital, exemplifico a edição do caderno “Mais!” (Folha de S.Paulo, 24/9/2006). Primeiramente, cabe reconhecer que o caderno é uma das raridades no campo da boa imprensa cultural, razão pela qual não se deve deixar passar o deslize, quando este ocorre.
A primeira página do caderno destaca “O altar do capitalismo”. Nela o foco se destina à publicação brasileira de uma das mais importantes obras de Walter Benjamin – Passagens. Abaixo, há mais duas chamadas: uma para o filósofo francês Bernard-Henri Lévy, sobre a “redescoberta da América”; outra, ao lado, “A performance de Daniela Cicarelli”.
Seja qual for o argumento jornalístico, é, no mínimo, deplorável juntarem-se os nomes de Walter Benjamin e de Bernard-Henri Lévy ao de Cicarelli. Pior ainda, é verificar a seriedade de enfoque referente aos dois primeiros (produção jornalística do “Mais!”, quando faz jus ao nome) e igual pretensa seriedade ao tematizar, em tom acadêmico, com direito a entrevista, a pífia relação sexual que a “musa” mencionada manteve numa praia de Cádiz e flagrada (será?) por um paparazzo espanhol.
Essa é uma das vezes em que o “Mais!” resolve ser “menos”. Suspeito que o perfil do leitor de “Mais!” não estará inclinado a tecer considerações maiores à questão. Embora a matéria estivesse inclusa numa discussão maior a respeito do “consumo de conteúdos irrelevantes”, não se justifica o apelo nominal em primeira página. O editor bem poderia ter formulado outra chamada, a exemplo de “O consumo de banalidade”. A mistura de planos entre o “sublime” e o “grotesco” não redunda em bom tempero. Há sempre ameaça de alguma indigestão. Enfim, o “Mais!” não precisa colaborar para o “menos”. De “menos” temos muito “mais”.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)