A barbaridade do crime chocou a todos, mesmo sem que os jornais publicassem fotos dos dois jovens assassinados com 64 tiros. Afinal, pelo que a imprensa apurou, eles estavam rendidos, encostados na parede com os braços estendidos, de costas para seus algozes: dois policiais militares do antigo Estado do Rio, lotados na Baixada Fluminense. A simples descrição do caso criou certa comoção pública.
O crime foi na madrugada do sábado, 17 de agosto de 1974, no bairro de Vila de Cava, em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense. A primeira notícia em O Globo – na segunda-feira, 19/08 – sequer mereceu chamada de primeira página. O destaque na capa do jornal surgiu três dias depois, quando o presidente da República, General Ernesto Geisel, mandou seu ministro da Justiça, Armando Falcão, pedir “urgentes providências” ao governador do antigo Estado do Rio, Raimundo Padilha. O telegrama ao governador começava descrevendo o estado de espírito do presidente: “estarrecido e chocado barbaridade cenas descritas…”
Quando ocorreu o crime, estagiava na Rádio Globo e não me envolvi na sua cobertura. A Rádio, assim como o jornal O Globo e a TV Globo, tinha na Baixada Fluminense um setorista conhecido como “Manoel da Baixada”. Passava registros feitos nas delegacias e hospitais, mas também tinha o hábito de anunciar com antecedência corpos que apareceriam “desovados” em áreas ermas. Não era profecia, mas informação. Sem que ele explicasse os motivos, “Manoel da Baixada” merecia a confiança de grupos de exterminadores da região. Vivíamos a famigerada época do “Esquadrão da Morte”.
Já em 1976, ao estagiar em O Globo, uma chance me surgiu. Em um fim de tarde, notei dificuldade na escalação dos repórteres mais antigos para passar a noite na Baixada Fluminense. Rapidamente, me ofereci para cobrir a reta final do julgamento, na madrugada do dia 4 de maio, uma terça-feira, no Fórum de Nova Iguaçu. Foi minha primeira grande matéria no jornal, ainda que não assinada.
A sentença, lida às 6h30 daquele dia 4, ao admitir a tese da defesa, isto é, que os policiais estavam no estrito cumprimento do dever, absolveu-os e aumentou a lista dos crimes impunes no Estado. Não muito diferente do que ocorre nos dias atuais.
O caso, porém, me proporcionou uma bela experiência. Não só por ser o primeiro júri que presenciei, como pela experiência profissional. A matéria – um relato detalhado de tudo que tinha visto – foi escrita de manhã, após a madrugada virada: um amontoado de laudas – estávamos longe da era tecnológica – com uma narrativa dos fatos em sua ordem cronológica e não de acordo com a importância dos mesmos. Ao, no final da tarde, voltar ao jornal para “lamber a cria”, tive uma aula de jornalismo com um dos melhores redatores da editoria, o hoje autor de novelas Aguinaldo Silva.
Apesar de ocorrida às 3h45 da madrugada, a chacina teve quatro testemunhas, como narrou O Globo no dia 19. Mesmo amedrontados, após serem acordados pelo barulho do motor de uma radiopatrulha (assim chamavam os carros da PM), moradores da Rua das Rosas, pelas frestas das janelas, a tudo assistiram. Os menores, que pernoitavam em uma barbearia desativada e abandonada, pediam clemência, gritavam por socorro e pelos vizinhos. Pedro Paulo da Silva, de 17 anos, era conhecido na região. Mas, ninguém intercedeu. Os viram morrer e ficarem estirados defronte ao prédio vazio, cujas paredes tinham as marcas dos tiros.
Auto de resistência tardio
Vizinhos viram as rajadas da metralhadora e os tiros de uma escopeta. Após os 64 disparos contabilizados pelos peritos, um dos policiais, para certificar-se de que o “serviço estava encerrado”, com uma lanterna, verificou o estado dos corpos, confirmando já estarem inertes.
Pedro Paulo, de 17 anos (o jovem de 15 anos jamais teve sua identificação descoberta) não tinha passagem pela polícia. Ainda assim, a defesa dos policiais acusados – os solados PM Artur Sérgio Machado e Genésio Vicente Vianna – alegava que, junto com o desconhecido, pertencia a uma quadrilha que dias antes assaltou uma padaria e seviciou uma mulher.
O terceiro militar envolvido na chacina – o tenente Paulo Roberto Mello – foi apontado como mandante, mas jamais enfrentou um julgamento. Um recurso livrou-o do Júri de maio. Depois, beneficiou-se da absolvição – sem culpados como é que poderia haver mandante?
Impunidade persistiu
Inicialmente os soldados negaram o envolvimento. Com o surgimento de testemunhas, tal como ocorre hoje, apelaram para a versão da resistência à prisão pelos réus, apesar de a tese chocar-se frontalmente com os depoimentos dos moradores. Segundo os réus, ao se anunciarem na porta da barbearia desativadas, cinco homens saíram do local atirando. Na reação, atingiram os dois menores. O auto de resistência, porém, só foi feito na Delegacia, dias depois de o crime ser noticiado. Retardo que a defesa alegou ser normal.
No júri, de pouco adiantou o promotor José Pires Rodrigues lembrar que os PMs estavam de folga e sequer deveriam sair com o carro da corporação. Também não comoveu os jurados a insistência na necessidade de punir os assassinatos para frear a violência, que só crescia na região. Nos anos 60/70, o Esquadrão da Morte agia impunemente na Baixada, muitas vezes por empreitada, provocando uma matança generalizada.
Na defesa dos soldados, os advogados Elmo Miranda e João Batista Correia de Melo não negaram o fuzilamento nem a tentativa dos réus em forjarem provas, mas levantaram a tese do cumprimento das ordens dos superiores. Os PMs foram ao local com conhecimento do tenente que determinou a resolução do caso naquela noite. Tentaram ainda, outra prática que persiste até os dias atuais: transformar vítimas em culpados, mesmo sem evidências de que seriam delinquentes. Correia Melo também minimizou o interesse do presidente Geisel no caso: “ele está mais preocupado com sua viagem à Londres (que ocorreria dias depois) e não com este crime de Vila de Cava”. Acabou tendo sucesso.
O lead está no pé
O alerta foi dado por Aguinaldo Silva, a quem coube revisar o meu material. Referia-se a uma frase do soldado Artur Machado, expressa enquanto os jurados – dos quais, apenas um com grau universitário – decidiam seu destino na sala secreta do Tribunal do Júri. Ele se queixava da dureza do promotor com os dois réus, apelando para sua dedicação à sociedade, inclusive ao buscar permissão para trabalhar fora do seu horário.
Nas antigas redações misturavam-se profissionais experientes com os chamados “focas”. Era uma excelente forma de se aprender jornalismo, que hoje já não existe tanto já que para reduzir custos os profissionais mais antigos (e mais caros) são substituídos pelos mais jovens. Também ainda não existia o engessamento do tamanho das matérias, provocado pela redução do papel, em busca de economia. Assuntos com grande repercussão, facilmente ganhavam espaço.
Com alguns meses estagiando em O Globo, meu trabalho limitava-se a apuração por telefone. Mas, nos momentos livres eu espiava o trabalho dos redatores. Por isso, naquela tarde voltei à redação para “lamber a cria” assistindo à edição do material. Aguinaldo mexeu muito na matéria, mas não fez mudança significativa na abertura que, como não poderia deixar de ser, narrava a decisão dos jurados não reconhecendo os homicídios denunciados pelo Ministério Público.
Para não mexer no chamado “lead” e aproveitar o que encontrou perdido no pé do meu texto, sugeriu a criação de um “olho” no qual destacou a frase do soldado que era uma pura e simples demonstração de sua índole violenta: “Eu adoro esta profissão, está no meu sangue. Se não fosse policial, seria marginal”.
Impunidade persistiu
Através de um recurso no qual sustentou que a decisão dos jurados não respeitava os fatos e provas apresentados, o promotor Pires Rodrigues obteve a anulação do júri e realização de um novo, em março de 1980. Eu já morava em Brasília e não acompanhei o caso, sequer por leitura. Mas, apesar de todas as provas levantadas, os réus foram novamente absolvidos pelo mesmo placar: quatro a três.
Foi um reflexo claro do medo que dominava a população, ali representada pelos jurados, daquela que chegou a ser considerada uma das mais violentas regiões do país. O mesmo medo que, hoje, faz muitos defenderem a redução da maioridade penal ou justificar atrocidades cometidas por policiais.
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Marcelo Auler é jornalista