Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A incineração do lixo ajuda a evitar o apagão?

O assunto mais debatido pela imprensa brasileira nas últimas duas semanas foi o apagão do dia 10/11/2009. Muito se tem comentado sobre os motivos do apagão, seus supostos culpados e alternativas para que o sistema energético brasileiro não volte a entrar em colapso. Segundo especialistas consultados pelo UOL na matéria ‘Brasil precisa diversificar sua matriz energética’ (14/11/2009 – 07h00) e a reportagem ‘Apagão: chegou a hora das alternativas mais sustentáveis’, publicada pela revista ‘Sustentabilidade’ (12/11/2009 – 11h24), existem três alternativas para o setor energético brasileiro superar o caos anunciado: 1) modernizar o sistema de distribuição de energia; 2) adotar o smart grid (redes elétricas de pequeno porte) na geração e distribuição de energia; 3) diversificar a matriz energética, usando energias renováveis e ambientalmente sustentáveis.

A possibilidade do uso de energias que não agridem o meio ambiente abre um leque de discussão interessante já que o país poderá contar com uma matriz energética limpa, dando uma prova de que é possível conciliar o desenvolvimento econômico e os limites da natureza. No entanto, a imprensa brasileira deve estar atenta para a dicotomia do discurso ambiental nacional, permeado por um ambientalismo econômico que confunde as fronteiras entre os aspectos econômicos e ambientais da questão.

Mitos e verdades

O jornal Última Hora News, da região do ABC paulista, publicou no dia 24/03/2008 uma entrevista com o renomado professor da Universidade de São Paulo Sabetai Calderoni, titulada ‘O uso do lixo como fonte de energia elétrica ecologicamente correta’. Na entrevista, o professor admitiu ser satisfatório, desde uma perspectiva econômica e ambiental, a geração de energia através da incineração de resíduos que não possuem valor econômico para a reciclagem. Sobre a emissão de dioxinas, furanos e outros gases tóxicos expelidos com a incineração, o professor Calderoni comentou que o uso de filtros impede a emissão destes gases no meio ambiente. Em síntese, a incineração propicia o reaproveitamento dos resíduos, diminui os custos de tratamento final dos resíduos em aterros sanitários e ainda gera energia, ‘matando dois coelhos com uma cajadada só’, expressão usada na reportagem.

Faltou a quem fez a entrevista matar o terceiro coelho com a mesma cajadada que seria a consulta prévia ao informe disponível e facilmente encontrado na internet titulado ‘Recursos em chamas’, produzido em 2004 pelo movimento Aliança Global para Alternativas à Incineração (sigla Gaia, em inglês). Segundo o Gaia, a incineração tem um custo econômico implícito altamente desfavorável, o que por si só inviabiliza seu uso. Em países em vias de desenvolvimento, caso do Brasil, a insuficiência econômica da planta de incineração devido à debilidade dos sistemas de coleta e transporte de resíduos faz com que os custos de operacionalização da planta incineradora sejam remetidos diretamente aos contribuintes, na forma de taxa direta de lixo. Neste sentido, o terceiro coelho morreria se o entrevistador perguntasse ao entrevistado se o ‘benefício’ econômico da geração de energia através incineração compensa o gasto do contribuinte por manter o sistema funcionando.

Na secção mitos e verdades sobre a incineração, o mesmo informe Gaia indica que por mais que os atuais métodos de incineração sejam considerados ‘seguros’ ambientalmente, a menor quantidade de gases que a incineração expele resulta em grande contaminação ambiental devido à toxicidade e diversidade dos gases expelidos. A incineração representa ainda uma ameaça aos lençóis freáticos devido à disposição final das cinzas do processo de queima dos resíduos.

Não gerar resíduos

A proposta unilateral de não consultar demais fontes de informação sobre incineração diminuiu a importância da entrevista realizada pelo jornal Última Hora News para o debate especializado do tema. Ainda, e o que é mais grave, a maneira como o conteúdo da entrevista foi apresentado pode levar o leitor pouco informado sobre incineração a uma análise simplificada de um tema complexo, que é debatido com profundidade por importantes grupos ambientalistas e diversos setores acadêmicos há quatro décadas.

Na Espanha, o grupo ambientalista ‘Ecologistas en acción’ e mais 35 outras entidades sociais criticam ferozmente o uso de incineradoras como forma de gestão final dos resíduos produzidos em Barcelona. A reportagem pode ser consultada no site do grupo ambientalista e no jornal eletrônico Ecodebate do dia 08/11/2009, que traz a reportagem ‘Ecologistas critican la hipocresía de la Administración por la construcción de una incineradora en Barcelona’. Apesar da forte pressão exercida pela direita cristã junto ao parlamento alemão para a aprovação de leis mais brandas ao uso de incineradoras, a imprensa local tem destacado a mobilização de 500 organizações não governamentais alemãs que se opõem veementemente ao uso de incineradoras na Alemanha.

Uma vez mais ressalto a importância de maior conhecimento técnico por parte da imprensa brasileira sobre a questão dos resíduos sólidos. Aproveitando a possibilidade do debate sobre energias renováveis, espero que não surjam reportagens de ode à reciclagem de lixo como alternativa ambiental, ecológica, sustentável, limpa etc. ao apagão, da mesma maneira como surgiram diversas reportagens do gênero em 2001, quando houve o primeiro apagão elétrico no país, entre elas a matéria publicada no dia 12/02/2003 pelo maior portal de notícias sobre meio ambiente da América Latina, Ambiente Brasil.

A reportagem apresentava os elevados índices de reciclagem de latas de alumínio do ano de 2001, relacionando tais dados a possibilidades de ‘reciclagem de energia’, termo citado pelo então presidente do Instituto Nacional de Energia Elétrica, entrevistado naquela ocasião. No entanto, em nenhum momento foi citado que a melhor maneira de se economizar energia e, portanto, contribuir para evitar o apagão, é não gerar resíduos, conforme indica a Agenda 21 global.

******

Doutorando em Geografia, Universidade de Barcelona, Espanha