Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A invenção de um movimento terrorista

Desvendar as formas com que a ‘cultura de opressão’ aos movimentos populares opera no Brasil é o objetivo da dissertação de mestrado ‘A revista Veja e a invenção do ‘MST terrorista’, de Najla dos Passos.


Sobre a imagem do MST construída pela mídia brasileira, mais especificamente pela revista Veja e a representação do movimento pela sociedade civil, Najla conversou, por e-mail, com a IHU On-Line. ‘De brasileiros humildes e vítimas de um Estado omisso, os sem-terra, tal como os sertanejos de Canudos, foram transformados em representantes da `sub-raça brasileira´ que, à margem da ordem e do progresso da civilização letrada, constituem a imagem do Brasil baderneiro e atrasado, combatido pelas forças hegemônicas que, desde a implantação da República, dizem querer um país moderno e civilizado, mesmo que apenas para uma parcela ínfima da população’, afirma.


Najla tratou ainda de questões concernentes ao histórico do movimento no país, ao instrumento teórico do ‘materialismo cultural’ utilizado em seus estudos, além da relação do MST com o governo Lula. ‘O governo Lula, apesar das relações históricas com os sem-terra, nada fez para efetivar a reforma agrária que o movimento tanto anseia. A contribuição da administração do PT ao setor foi tão ínfima que João Pedro Stedile chegou a declarar, em entrevista à imprensa, que Lula operou uma verdadeira `contrarreforma agrária´ no campo brasileiro’, lembra.


Najla dos Passos é graduada em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e mestre em Linguagens pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Já atuou como professora da Faculdade de Comunicação Social da Universidade de Cuiabá (UNIC). Atualmente, trabalha com assessoria de imprensa em Brasília (DF).


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Você faz um resgate histórico dos trabalhadores que lutavam por terra que vem desde o descobrimento. Qual a imagem que o povo sem-terra teve nesses momentos históricos, como quando os portugueses chegaram ao Brasil, depois com a vinda dos portugueses etc.?


Najla dos Passos – As classes dominantes no Brasil sempre foram extremamente hábeis em utilizar o repertório cultural disponível nas suas respectivas épocas para desumanizar os mais pobres, os excluídos. Quando os portugueses chegaram ao Brasil e encontraram os índios vivendo fartamente e sem conceber a ideia de que a terra não era um bem comum, usaram todo o arsenal possível no repertório cultural da época para convencer o mundo de que eles eram selvagens, atrasados, boçais… que não eram seres humanos. Com isso, justificavam a prática de extermínio que utilizavam contra aqueles que não se deixavam catequizar, não aceitavam a nova ordem estabelecida. O pior é que muito dessa visão distorcida dos índios sobrevive até hoje: quantos ainda os associam à preguiça, ao atraso, à inabilidade para o trabalho?


Da mesma forma, os negros africanos foram tratados como ‘objetos animalescos’, sempre associados ao perigo e à selvageria. Quando resistiam à escravidão, tornavam-se, como os índios, objeto de repressão impiedosa. É interessante notar que os termos bando, quadrilha e mesmo terror já eram amplamente utilizados pelos jornais da época para transformá-los em coisas. Data desta época, também, as primeiras referências ao discurso de que o trabalho na terra é indigno dos homens cultos, letrados, dotados de civilidade. Decorrência disso é a construção da ideia de que a foice, mais do que um instrumento de trabalho, é uma arma. Ideia que corrobora com a associação largamente difundida até nossos dias da relação entre trabalhador rural e criminalidade.


Infelizmente, nem mesmo a Proclamação da República alterou esse estado de ‘coisas’. Os sertanejos que se rebelaram contra a miséria e a falta de oportunidade que assolavam o campo também foram marginalizados pelo discurso dominante. O melhor exemplo é, sem dúvida, o tratamento destinado aos sertanejos de Canudos, até porque isso se deu em uma época de grande evolução dos recursos necessários para a confecção e a distribuição dos jornais. Os pobres camponeses foram tratados como animais retrógrados que ‘manchavam’ a construção do Brasil moderno, livre, republicano. Foi aí que a construção cultural da dicotomia entre a cidade/civilização versus campo/atraso, que a imprensa hoje faz parecer tão moderna e atual, firmou-se como premissa do discurso republicano. Mesmo os imigrantes brancos que vieram tentar a sorte no Brasil foram tratados de forma pejorativa e discriminatória, mostrando que a questão de classe, neste aspecto, sobrepõe-se às questões de gênero e raça, por exemplo.


Um dos questionamentos de sua dissertação é no que se baseia o discurso que considera o MST terrorista. Como você acha que a mídia brasileira construiu esse estereótipo?


N.P. – A postura da mídia convencional de equiparar o MST a organizações terroristas sempre me pareceu tão leviana, que fiquei sinceramente intrigada com o tema. Como jornalista, acompanhei por muitos anos, trabalhando para a própria imprensa convencional, o processo de ocupação de terras, os conflitos agrários, as ações do MST. Conhecia a processo suficientemente bem para ter clareza que o MST é um movimento pacífico, desarmado, disposto a utilizar muitos dos trâmites democráticos a que temos acesso na nossa sociedade. Com a minha pesquisa, descobri que foi justamente nesses elementos já cristalizados na nossa cultura que essa associação absurda se baseava. As imagens se repetem: é o sem-terra perigoso, indomável, sempre ‘armado’ com foices, o analfabeto boçal, ignorante e atrasado que impede o país de se desenvolver, modernizar-se e tornar-se o tão sonhado país do futuro… são loucos insanos, como os terroristas islâmicos, pintados como fanáticos dispostos a impedir a modernidade global até mesmo com a própria vida, se necessário for. O MST, de vítima, passou a ser apontado como a principal causa da violência no campo, como o responsável por crimes de toda natureza, foi associado a facções criminosas urbanas como o PCC, acusado de fanatizar as crianças, incentivando-as a adotar posturas ideológicas consideradas atrasadas, como o comunismo e o socialismo, e, enfim, considerado o responsável por colocar em xeque toda a ordem democrática estabelecida no Brasil.


E pela Veja, especificamente?


N.P. – A revista Veja é um fenômeno editorial sem precedentes. É a quarta revista mais vendida do mundo, apesar de ser editada em um país que ainda envergonha pelo número de analfabetos totais e funcionais. Pela sua penetração, força política e mesmo pelo seu tempo maior de elaboração, funciona como uma espécie de usina ideológica da classe dominante, na qual são testadas as ideias que depois serão difundidas pelo restante da mídia comprometida com o capital. Desde que foi criada, no período mais duro da ditadura militar, contou com grande aporte de capital estrangeiro e sempre defendeu os interesses do neoliberalismo norte-americano acima de quaisquer outros. Não por acaso, elegeu o MST como o principal inimigo do avanço neoliberal no Brasil, desde o início dos anos 1990, e não mediu esforços para rechaçá-lo, direcionando a postura do restante da mídia neoliberal em relação ao movimento. A diferença é que, até a eleição de Lula, Veja associava o MST ao comunismo, ao perigo vermelho. Mas depois que o Brasil elegeu um presidente de esquerda, precisou buscar um novo discurso para reforçar os aspectos negativos do movimento. E o encontrou justamente no discurso da ‘guerra contra o terror’, capitaneado pelos Estados Unidos, após os eventos de 11 de setembro de 2001.


Mas, convenhamos, que nem mesmo para Veja é tarefa fácil transformar um movimento pacífico e querido dos brasileiros em organização terrorista. A revista precisou visitar a fundo o imaginário cultural do brasileiro para descobrir meios de sustentar essa acusação. E qual seria a figura dessa nossa história sem fortes tradições terroristas que melhor se adequaria à imagem desses fanáticos religiosos atrasados, incapazes de entender as premissas do progresso? A Veja foi muito esperta em resgatar Antônio Conselheiro, personagem histórico que foi peça-chave na revolta de Canudos e que teve sua imagem amplamente deturpada pela mídia de sua época. Da falsa imagem de um Antônio Conselheiro fanático e insano, propagada pelo discurso hegemônico, a revista reconstruiu a figura de uma das mais fortes lideranças do MST, estendendo, assim, para ele, as características negativas atribuídas ao líder sertanejo do final do século 19. Fundamentada nos preconceitos próprios da ciência da época contra os brasileiros pobres e simples do sertão, eternizados pela obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, a revista re-significou os sem-terra à imagem e semelhança dos conselheiristas, já mascarados e massacrados pela retórica propagada pela imprensa e pelos intelectuais do século 19. De brasileiros humildes e vítimas de um Estado omisso, os sem-terra, tal como os sertanejos de Canudos, foram transformados em representantes da ‘sub-raça brasileira’ que, à margem da ordem e do progresso da civilização letrada, constituem a imagem do Brasil baderneiro e atrasado, combatido pelas forças hegemônicas que, desde a implantação da República, dizem querer um país moderno e civilizado, mesmo que apenas para uma parcela ínfima da população.


Quais são os principais elementos apontados na acusação ao MST?


N.P. – São tanto elementos residuais da tradição do pensamento colonial, imperialista e republicano brasileiro, alguns já citados, como também elementos emergentes, próprios da cultura do capitalismo tardio, como o pânico generalizado da violência e do terrorismo, apropriado com o propósito de imputar o repúdio absoluto à simples ideia da existência do MST. Procurando carimbar o movimento como uma organização baderneira e beligerante, a revista chega ao extremo de divulgar uma ligação jamais comprovada entre lideranças do MST e do PCC, a organização criminosa criada por presidiários paulistas, responsável por alguns dos mais impressionantes episódios de violência urbana no Brasil dos últimos anos. Parecendo desconhecer o fato de que o MST é efeito, e não causa das mazelas de um país marcado por uma desigualdade ímpar e, por isso, violento, a Veja omite e adultera o discurso de sustentação do movimento dos sem-terra, até o limite de classificá-lo como intolerante e avesso à ciência, como ficou bastante claro na cobertura do episódio de ocupação da Aracruz. Como se a ciência, como qualquer outra forma de discurso, não fosse apropriada pelas forças hegemônicas para respaldar seus objetivos de manutenção do status quo.


Como esta construção influencia na imagem que os brasileiros têm do movimento?


N.P. – Em 1998, o Ibope apurou que 80% dos brasileiros eram favoráveis à reforma agrária e apenas 12% eram contrários. Em 2003, uma nova pesquisa realizada pelo mesmo instituto revelou que 41% dos entrevistados se declararam ‘totalmente contra’ os sem-terra e outros 13% ‘parcialmente contra’. Os que se diziam ‘totalmente a favor’ ou ‘parcialmente a favor’ somavam 40%. 65% desaprovaram as formas com que o movimento agia, contra 30% dos ouvidos que aprovaram. O trabalho da imprensa neoliberal, portanto, influencia sim a imagem que o brasileiro faz do movimento. Mas não a determina por completo, como muitos teóricos da comunicação julgam capaz. A ação de outras forças sociais, nesse caso contra-hegemônicas, impede que essa ideia, embora dominante, torne-se unanimidade. Por isso a importância do trabalho de divulgação e de denúncia dos jornalistas, militantes e intelectuais nos jornais populares, sindicais, na imprensa pública, nas universidades, nos fóruns sociais etc.


Sua reivindicação é que o MST, entra governo e sai governo, permanece ofendido pela imprensa neoliberal. O governo Lula foi uma decepção para o movimento?


N.P. – Não posso, de forma alguma, falar pelo movimento. E sei que a questão é bastante controversa, inclusive dentro do próprio MST. Mas é impossível negar que, hoje, a concretização da reforma agrária no Brasil permanece como uma utopia distante, e o futuro do MST como uma incógnita. O governo Lula, apesar das relações históricas com os sem-terra, nada fez para efetivar a reforma agrária que o movimento tanto anseia. A contribuição da administração do PT ao setor foi tão ínfima que João Pedro Stedile chegou a declarar, em entrevista à imprensa, que Lula operou uma verdadeira ‘contrarreforma agrária’ no campo brasileiro. A média de famílias assentadas por ano foi inferior, inclusive, do que as beneficiadas com um pedaço de terra durante o governo Fernando Henrique Cardoso. E nada de infraestrutura, nem de liberação de crédito rural. Por outro lado, há companheiros que apontam a redução da violência no campo e o aumento da renda dos trabalhadores rurais por meio de programas sociais como o Bolsa Família, como avanços dos governos Lula… Uma coisa, porém, é certa. A ofensiva da imprensa neoliberal contra o MST continua intensa, mude ou não o governo e a conjuntura. É possível concluir também, a partir dessa pesquisa que, ao contrário do que a revista Veja apregoa em nome das forças hegemônicas, não é o MST que é anacrônico e atrasado, mas sim a elite brasileira comprometida com o ideário neoliberal. Afinal, é essa elite que precisa se ancorar em um discurso ultrapassado, insustentável cientificamente, já largamente desgastado pela imprensa de séculos atrás, em tentativas desesperadas de combater a luta dos trabalhadores em geral, nominados por ela de ‘classes perigosas’, em uma república proclamada pelo alto.


Como a ótica do materialismo cultural de Raymond Williams é tratada neste estudo?


N.P. – Considero Williams um autor fantástico, justamente porque ele amplia a visão marxista mais tradicional de que a cultura é apenas um reflexo das relações econômicas estabelecidas, seguindo a trilha aberta antes por Gramsci e Bakhtin. Para o autor, a cultura é uma arena em que forças divergentes se confrontam na disputa pelo espaço hegemônico. Não está associada apenas à doutrinação e manipulação, tão ressaltada pelos autores que se fixam no estudo da ideologia. E também não é apenas uma experiência particular, uma investida artística. É, sim, todo um modo de vida, influenciado e re-significado, inclusive, pelas próprias contradições de seu tempo histórico. É um instrumental que nos permite, por exemplo, entender porque nem todos os brasileiros consideram o MST uma organização terrorista, apesar da grande ofensiva da imprensa. Permite-nos também entender como elementos residuais, ligados às mais antigas tradições, podem se fazer atuais e presentes para re-significar situações novas, considerando e legitimando o estudo das concepções literárias, da história das ideias, das crenças científicas e mesmo das teses intelectuais. E, a partir deste entendimento, permite-nos criar novas formas de lutar para reverter esse quadro.


Porque a data de 11 de setembro é um marco para o seu trabalho?


N.P. – O 11 de setembro inaugura a chamada ‘guerra contra o terror’ que, com a desculpa de exterminar o terrorismo do mundo, cria novos mecanismos e elementos para desumanizar o diferente, impor preconceitos e exaltar supremacias. É o episódio que inaugura, para utilizar as palavras de Williams, a principal ‘estrutura de sentimento’ (ou a característica mais particular) da nossa geração: uma geração assustada, com um medo irracional de um perigo que, muitas vezes, ela não consegue identificar racionalmente, e acaba direcionando-o, com a ajuda hábil da imprensa, ao pobre, ao negro, ao sem-terra, ao favelado, aos ‘de baixo’, como definiria Williams. Uma geração tão bombardeada por imagens e informações que acaba perdendo suas referências de realidade e, acuada, começa a acreditar que a causa da violência está nos assentamentos, nas periferias, nas favelas, e não em um sistema econômico que exclui cada vez mais, que destrói o meio ambiente, que produz a guerra.