Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A irrealidade da mídia brasileira

Na sexta-feira (29/4), liguei a TV pela manhã, às 6h30, para acompanhar o informativo estadual da Rede Bahia (afiliada da Globo), e eis que fui tomada por uma surpresa: o informativo havia sido compactado, modificado. Perdi as notícias locais (da região cacaueira baiana, transmitidas pela TV Santa Cruz, de propriedade da Rede Bahia). Foi então que me dei conta que se tratava do grande dia do príncipe William e da sua futura esposa Kate Middleton. E, claro, a maior parte das redes de TV do mundo estaria transmitindo, ao vivo, a grande cerimônia do século(?). A Globo, é lógico, não seria uma das exceções, considerando a sua histórica preferência pelo(a)s mais abastado(a)s. E pelo espetáculo. Afinal, como afirma Guy Debord, vivemos na sociedade do espetáculo.

Às 7 horas em ponto estavam lá o casal Kate e William, interrompendo a programação habitual (aqui na Bahia, a exceção foi a Record local, que seguiu com o seu informativo). O espetáculo – que diga-se de passagem havia começado meses antes da cerimônia de casamento –, teve o seu ápice naquela manha e foi o tema central durante todo o dia. Não há dúvida de que o casamento real foi um acontecimento relevante. Mas, para quem? Talvez para a maioria do povo inglês, que apoia, admira e defende a monarquia, apesar do risco de terminar seus dias de vida recebendo uma pensão miserável da previdência (ou mesmo de ficar sem ela), já que desde 2008 o governo avisou ser imperativo economizar na juventude para assegurar o futuro porque, com o aumento da longevidade naquele país, corre-se o risco de uma crise previdenciária.

“A justificação das condições e dos fins do sistema”

Me perguntei o que justificaria a transmissão, em direto, para a maioria das cadeias de televisão do Brasil. Então logo pensei que, além de um grande espetáculo, aquela cerimônia também não podia deixar de ser vista como um negócio promissor. Afinal, quantas agências de festas, joalherias, quantos ateliês de costura e tantos outros segmentos não acabarão lucrando com aquele mega-espetáculo que encheu os olhos de milhões de pessoas no Brasil (e no mundo), fantasiando com uma luxuosa e glamourosa festa de casamento, com um vestido à la Middleton…? Não serão pouco(a)s quele(a)s que quererão imitar a realeza britânica, embora, provavelmente, não muitos poderão fazê-lo de modo tão extravagante. Mas, com certeza, não faltarão tentativas de se aproximar tanto quanto lhes permitam seus cofres e bolsos.

Sendo assim, voltando ao espetáculo, ressalto o que afirmou Guy Debord em sua obra A Sociedade do Espetáculo: “Sob todas as suas formas particulares de informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto do entretenimento, o espetáculo constitui o modelo presente da vida socialmente dominante. Ele é a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e no seu corolário – o consumo.” E acrescento que o espetáculo é também um mecanismo eficiente para distanciar os indivíduos contemporâneos das duras realidades que os cercam, como é o caso de nós, brasileiro(a)s, rodeado(a)s de tragédias sociais por todos os lados. Inclusive, naquela mesma manhã do casamento real, muitas pessoas sofriam com as fortes chuvas que caíam nas regiões Nordeste e Norte, vítimas do descaso dos representantes do Estado, que historicamente pouco investem m infraestrutura e em estrutura de defesa civil.

Mas a magia do espetáculo é tão grande que, mesmo assim, milhões de brasileiro(a) estavam deslumbrado(a)s com uma realidade tão distante e ao mesmo tempo capaz de fazê-los esquecer as mazelas cotidianas que tiram de nós a “grandeza” de pertencer ao “Primeiro Mundo”. Houve até quem viajou para acompanhar, “de perto”, o casamento real, numa prova de que (novamente utilizando a reflexão de Debord) “a forma e o conteúdo do espetáculo são a justificação total das condições e dos fins do sistema existente… a presença permanente desta justificação, enquanto ocupação principal do tempo vivido fora da produção moderna”.

Império da passividade

À medida em que as transmissões transcorriam (fiquei mudando de canais, sistematicamente, para ter certeza de que as redes estariam acompanhando, ininterruptamente, a cerimônia), me perguntava quantas informações de relevância – para nós, brasileiro(a)s – poderiam estar sendo trabalhadas pelos canais de TV nacionais.

Somente para dar um exemplo: as redes de TV poderiam cobrir mais acontecimentos e notícias referentes à América Latina e ao Mercosul. Quantos de nós sabemos que o Parlamento do Mercosul existe e é sediado na capital uruguaia, Montevidéu? E por falar na capital uruguaia, lembro-me que, no último jogo entre as seleções de futebol do Brasil e do Chile, em Salvador, certo repórter da Globo na Bahia afirmou ser Montevidéu a capital do Chile, numa clara demonstração de que, de fato, estamos mesmo muito desinformado(a)s acerca da América Latina, inclusive no tocante a coisas elementares… Enfim, voltando à AL, seria interessante assistirmos – mesmo que de vez em quando – a debates, reportagens, documentários referentes a certos aspectos que nos dizem respeito, particularmente o Mercosul (cujas poucas reportagens, quando são realizadas, limitam-se a evidenciar a “queda-de-braço” entre Brasil e Argentina, os dois membros mais influentes do grupo). Por que não, por exemplo, abordar os avanços, as estagnações no tocante a uma série de acordos entre os países membros, que poderiam facilitar a vida de muitas pessoas? Ou a atuação (ou falta dela) dos representantes brasileiros no Parlamento do Mercosul, entre outras questões?

Mas parece que nos habituamos ao espetáculo. Conforme Debord, o espetáculo “está ao mesmo tempo unido e dividido”[…] edifica a sua unidade sobre o dilaceramento”, pois “a contradição, quando emerge no espetáculo, é contradita pela inversão do seu sentido; de modo que a divisão mostrada é unitária, enquanto que a unidade mostrada está dividida”.

E é bem provável ser isso o que motiva e certamente continuará motivando os grandes grupos de mídia a apostarem na reprodução do espetáculo. Afinal, novamente parafraseando Debord, “ele é o sol que não tem poente no império da passividade moderna”.

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Doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporâneo e professora da Universidade Estadual de Santa Cruz – Ilhéus, BA