Deu azar a ministra Carmem Lúcia Antunes Rocha ao ter sua posse no Supremo Tribunal Federal marcada justamente na véspera de jogo do Brasil x Japão. Em dias assim, tudo o que importa é o peso de um craque, a contusão de outro, a tática que o técnico vai adotar. Os outros assuntos perdem importância. E as pobres mulheres, que teriam direito a um bom destaque na mídia, ficam espremidas em poucas linhas, menos até do que em tempos normais.
Quem sabe, sem a concorrência do noticiário da Copa, a presença da segunda mulher na mais alta corte do país merecesse mais atenção. Talvez, em outro momento, o fato de duas mulheres ocuparem lugar de destaque na Justiça do país levasse a matérias que discutissem o significado dessas nomeações para todas as que estão começando uma carreira e sonham chegar lá.
Em outros tempos, sem Copa do Mundo e com mais sensibilidade para realizações femininas, talvez a imprensa resolvesse discutir por que ter duas mulheres no STF faz diferença. Seria curioso saber, por exemplo, quantas são as mulheres formadas em direito, quantas estão empregadas, se ganham tanto quanto os homens na mesma função. Seria mais interessante ainda saber como era antes a carreira das mulheres na Justiça e porque só em 2006 as primeiras chegam à mais alta corte.
Em resumo
O que as leitoras gostariam de saber é que diferença faz ter mulheres tomando decisões sobre as leis que podem – ou não – beneficiar metade da população brasileira. Elas podem, com um parecer, mudar questões importantes para as mulheres como aborto, pensão alimentícia, guarda dos filhos, reconhecimento de paternidade, violência doméstica?
Se a imprensa ressalta o fato de que agora são duas mulheres no STF, teria que esclarecer por que isso não é apenas mais um dado curioso. Mas tudo que a imprensa fez, no dia seguinte à posse, foram registros resumidos.
‘A ex-procuradora do Estado de Minas Carmen Lúcia Antunes Rocha, 52, tomou posse ontem como ministra do STF (Supremo Tribunal Federal). Segunda mulher a integrar o STF, a ministra substituiu Nelson Jobim, que se aposentou em março. Foi a sexta nomeação do presidente Lula, que foi à posse. Natural de Montes Claros (MG), solteira, Cármen Lúcia é mestre em direito constitucional pela PUC-MG e doutora em direito do Estado pela USP.’ (Folha de S.Paulo, 22/6/2006)
‘Recentemente, a nova ministra Carmen Lúcia defendeu o programa Fome Zero e disse que as decisões judiciais têm de ser compreendidas por toda a população. Ontem a nova ministra do Supremo não concedeu entrevistas após a rápida posse, que durou cerca de 20 minutos’ (Estado de S.Paulo, 22/6/2006)
A nova atitude da imprensa
Embora a imprensa tenha desprezado a oportunidade de fazer boas matérias sobre a Justiça e o papel das mulheres na área, pelo menos alguma coisa melhorou. Carmem Lúcia não mereceu a tradicional matéria sobre mulheres, de que até Ellen Gracie foi vítima, falando de suas preferências pessoais quanto a roupas e maquilagem.
Pela primeira vez uma autoridade feminina conseguiu vencer o preconceito e ser citada – não importa se favorável ou desfavoravelmente – por suas idéias. Uma entrevista de Carmem Lúcia dias antes da posse acabou resultando em editorial do Estado de S.Paulo (20/6/2006) analisando as palavras – e intenções manifestas – da nova ministra:
‘Essas declarações mostram a disposição da ministra de adotar, na mais alta corte do País, a mesma combatividade política que a caracterizou como participante assídua dos congressos da OAB, como chefe da Procuradoria do Estado na gestão do então governador Itamar Franco e como signatária contra a globalização neoliberal e contra privatizações de empresas estatais, como no caso da Companhia Vale do Rio Doce. O problema é que o engajamento político é incompatível com a função judicial, que se destaca pela neutralidade e pela imparcialidade. Por isso as palavras da ministra Carmem Lúcia causam apreensão. Se deixar de lado a isenção e a objetividade em seus julgamentos, para atuar como ministra do social , ela estará misturando papéis e disseminando incerteza jurídica. No Estado de Direito, ensinam os manuais jurídicos, o preço da independência e da autonomia da Justiça é a isenção e a neutralidade de seus integrantes. Resta esperar que a nova ministra do STF, que toma posse amanhã, se recorde dessa lição’. (‘A toga e a política’, Estado de S.Paulo, 20/6/2006)
Discutir apenas as idéias da ministra, sem levar em conta o fato de ela ser mulher, acabou sendo uma bela atitude feminista por parte da imprensa que, certamente, teria a mesma reação caso o escolhido – e responsável pelas declarações – fosse qualquer outro dos integrantes do Supremo. É o que se espera, aliás.
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Jornalista