Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A Ley de Medios argentina

Há exatos dois anos, a Argentina aprovou a Ley de Medios, que tem o objetivo de investir contra a concentração dos meios de comunicação. O documento trouxe mudanças no dia a dia da sociedade, pelo menos oficializadas e defendidas no papel, o que para muitos especialistas já é um grande avanço. A lei dividiu de forma tripartite as faixas de frequência destinadas à radiodifusão entre veículos estatais, comunitários e privados e criou órgãos de fiscalização e controle social da mídia. A lei geral ainda definiu limites para a publicidade, institui a classificação indicativa de programas e proibiu o uso de concessões de radiodifusão por políticos em cargos públicos.

De acordo com o portal oficial do governo argentino, “a nova lei substitui a lei 22.284 da ditadura militar e busca garantir a democracia, os direitos humanos, o pluralismo, a promoção de emprego e os conteúdos nacionais”. Ainda reforça a ideia de disponibilizar 33% das emissões para o setor comunitário. Boa parte do conteúdo da nova lei foi baseado em propostas organizadas pelos movimentos sociais ligados ao tema das comunicações.

E o que dizer do público infanto-juvenil? Para a socióloga e cineasta argentina Susana Velleggia, especialista em televisão educativa e cultural, há também o que se comemorar. À frente da Asociación Civil Nueva Mirada, responsável há dez anos pelo Festival Internacional de Cinema para a Infância e Juventude, Susana destaca a criação do Conselho Assessor de Comunicação Audiovisual e Infância que tem muito mais do que uma simbologia: tem a chance de intervir na produção de uma TV de qualidade para crianças e adolescentes.

A revistapontocom conversou com Susana Velleggia sobre este e outros temas. Acompanhe.

“Papel da mídia é cada vez mais importante nas eleições”

Em que contexto a Ley de Medios surgiu?

Susana Velleggia – A lei surgiu de uma conjugação de fatores, com a firme decisão política da presidente Cristina Kirchner e a obsolescência do decreto-lei anterior, promulgado pela ditadura militar em 1980. O texto recebeu mais de 170 retoques e remendos, implementados por outros decretos do próprio poder executivo nacional durante a década de 90, no apogeu da doutrina econômica neoliberal. Tudo isso teve o objetivo de facilitar os processos de concentração do poder de comunicação nas mãos de poucos grandes grupos. Empresários privados formaram um oligopólio cartelizado, com capacidade de impor uma agenda à sociedade, controlando preços e práticas do mercado da comunicação e impedindo o surgimento de outras vozes e opiniões.

Outro fator que colaborou para esta mudança foi a luta dos setores acadêmicos das diversas áreas de comunicação, dos sindicatos e dos profissionais progressistas que, há 20 anos, vêm demandando uma nova lei de radiodifusão por meio de suas organizações e de uma formação de uma espécie de movimento cívico em torno de um documento intitulado “20 pontos para uma radiodifusão democrática”. Este documento foi a base da elaboração da atual lei, embora não tenha considerado vários temas. Sem dúvida, ele foi muito mais além das demandas explícitas da sociedade que passou por processos históricos extremamente frustrantes, como a censura, o terror, a repressão, a ditadura, a impotência do regime democrático e o império absoluto das leis do mercado.

Cabe apontar também que aproximadamente 75 projetos de lei de radiodifusão estiveram em tramitação no parlamento desde a recuperação da democracia, em 1983. Porém nenhum deles pode ser sancionado devido a intensa pressão do lobby das empresas privadas de comunicação, de modo que os deputados e os políticos em geral foram reféns de si mesmos. Na Argentina, há eleições gerais a cada quatro anos e eleições de renovação parcial da Câmara dos Deputados e dos senadores a cada dois. Isso quer dizer que temos campanhas eleitorais a cada dois anos em que o papel da mídia é cada vez mais importante. Suas “operações” midiáticas podem “fabricar” um candidato ou destruir a credibilidade de outro.

Os decretos “desreguladores”

É fato que todo o processo de elaboração que resultou na sanção desta atual lei foi acompanhado por uma participação inédita da sociedade. O rascunho do projeto foi apresentado pela presidenta Cristina Kirchner em um ato público. A partir daí, a análise foi submetida em fóruns públicos em todas as províncias do país. Durante esse processo, foram recebidas, incluídas e corrigidas muitas propostas, com referência de quem efetivamente propôs cada modificação. Isso exigiu um processo de depuração e nova redação do documento, o que foi feito por um grupo extremamente especializado e capacitado. Esse processo levou cerca de um ano e foi acompanhado por atos, manifestações e movimentos massivos em todo o país, que obviamente as empresas de comunicação hegemônicas omitiram e dissimularam.

Na prática, o que representa a aprovação da nova lei?

S.V. – A lei 26.522 implica numa mudança revolucionária no sentido de democratizar as relações e o cenário da comunicação audiovisual na Argentina. Sua sanção e aplicação têm sido acompanhadas pela instrumentalização da TV Digital. Assim ela abrange os canais e rádios em funcionamento quanto aqueles que poderão vir a surgir com a possibilidade que traz consigo a digitalização da televisão, bem como, é lógico, a participação de outros atores da cadeia produtiva.

Frente ao monopólio do discurso audiovisual (rádio e TV) de um ou mais grupos de mídia, a lei abre espaço para que cooperativas, ONGs, municípios, universidades, escolas, grêmios etc possam obter licenças para operar canais na TV aberta. A lei abre espaço para a maior parte das forças representativas de todos os setores da sociedade que antes, sob a vigência do decreto-lei 22.285, com seus decretos reguladores a favor dos poderosos, chamados de decretos “desreguladores”, não tinham espaço. Nesta época, tanto os governos da ditadura como os do projeto neoliberal preferiram se entende e negociar com poucos grupos de mídia, com os conglomerados. Era uma questão de ter em seu controle tanto a ideologia quanto os negócios.

“O dilema é definir as regras do jogo”

Quais são os pontos positivos e negativos da lei?

S.V. – Entre os aspectos estruturais que já mencionei está a transformação nas relações de poder cultural, econômico e comunicacional em favor da sociedade e dos atores independentes ou minoritários. Há que ressaltar também o impacto sobre a produção audiovisual nas economias regionais e sobretudo na empregabilidade. As emissoras das províncias [estados] da Argentina, dependentes dos grupos de mídia, atuam como meras difusoras da programação produzida no âmbito central – cidade de Buenos Aires e Zona Metropolitana. A lei traz a descentralização, o que significa um intenso processo de movimentação e dinamização dos recursos locais, tanto humanos quanto econômicos e culturais. Esta lei, como todas as outras, pode melhorar a partir do fato de valorar seu funcionamento na realidade, sobretudo na realidade de um campo cujo dinamismo é enorme.

Porém, considero um erro a não inclusão, como estava no projeto original, das telecomunicações, que oferecem tanto a telefonia fixa como a móvel e acesso à internet. Hoje, na Argentina, a telefonia fixa e móvel estão concentradas em três grandes grupos/conglomerados multinacionais, destacando-se a Telefonica, da Espanha, a Telefônica da França e o Grupo Slim, do México. Trata-se de um setor que encontra-se hoje totalmente desregulamentado. Agora é mais difícil fazer uma lei das telecomunicações já que estes são os atores multinacionais de maior poder econômico e político que temos. Além disso, seus interesses estão fortemente atravessados pelo setor financeiro multinacional, que como estamos vendo na atual crise mundial é um poder praticamente intocável. A presidente Cristina Kirchner ordenou suprimir este capítulo do projeto original devido, particularmente, à pressão dos deputados do partido Proyecto Sur que se recusaram a votar caso fossem mantidos os artigos referentes às telecomunicações. Como os votos deste partido eram imprescindíveis para sancionar a lei, a presidente disse publicamente que suprimiria os artigos em questão. Deste modo, os opositores não tiveram como não aprovar a lei.

Lamento a profunda ignorância dos nossos deputados sobre este tema. Digo ignorância, neste caso, do partido da esquerda, porque todos os outros partidos de centro e centro direita trabalharam para os grupos de mídia e adotaram a estratégia política desenhada por eles para se opor à lei, inclusive mentindo descaradamente para manipular a opinião pública.

Trata-se de um grande embate. A Associação Argentina de TV a Cabo (ATVC), que é controlada pelo grupo de mídia mais importante, o Grupo Clarín, vem pressionado para que as empresas telefônicas não sejam habilitadas a transmitir conteúdos audiovisuais. O pano de fundo desta situação é um conflito de interesse entre as empresas de mídia, que têm participação acionária nas empresas de telefonia fixa, e as próprias empresas de telefonia que lutam por ingressar no mercado de conteúdos audiovisuais por si mesmas, o que já está começando a ser feito diante das possibilidades que a convergência e a digitalização oferecem. O dilema é definir as regras do jogo. Porque do contrário, corremos o risco de mudar a concentração dos meios de comunicação de uma mão para outra, de um grupo para outro.

“Deve-se aprender a escutar crianças e adolescentes”

Em que medida esta nova lei contribui para a produção de conteúdos voltados para a infância e adolescência?

S.V. – Com relação às crianças e aos adolescentes, a lei significa um gigantesco passo. Isto porque a lei estabelece uma articulação entre o cinema e a TV tradicional com o entorno audiovisual das múltiplas janelas – os games, a telefonia celular, a internet etc. Estamos diante de um cenário de múltiplas linguagens tecnologicamente moduladas. E é desta forma que as crianças, os adolescentes e jovens se comunicam e expressam. Essa mudança de paradigma se baseia em quatro eixos da política de comunicação que estão presentes na lei. São eles: 1) a desconcentração da atual estrutura de propriedade hiper concentrada nas mãos de poucos grandes conglomerados multimídias privados, que praticamente monopolizam a TV a cabo do país; 2) a descentralização territorial de uma estrutura de produção de rádio e televisão historicamente centralizada na cidade de Buenos Aires; 3) a abertura da diversidade cultural e informativa, mediante o estímulo e incentivo da participação da pluralidade de atores sociais na produção e emissão de discursos audiovisuais e acesso às frequências, restrito até então às empresas comerciais e ao Estado; e 4) o fomento para a produção nacional e local, realizada tanto por canais de TV quanto por produtores independentes, com a fixação de porcentagens mínimas na programação nacional.

A nova lei institui o direito de todos os cidadãos à cultura, com ênfase nas crianças, adolescentes e jovens. Publico para o qual se destinam medidas paradigmáticas expressadas no artigo 17 – que cria o Conselho Assessor para Comunicação Audiovisual e Infância e enumera suas funções – e em alguns incisos dos artigos 68, 70, 71, 81, 107, 121 e 124. Além do artigo 153 que, ao criar um fundo de fomento para a produção de programas de televisão de qualidade para crianças, traz uma atribuição maior ao conselho. Neste momento, uma comissão do Conselho está trabalhando na regulamentação do Fundo de Fomento Competitivo para a Produção de Programas de TV de Qualidade para as Crianças.

Isso outorga ao Conselho atribuições que vão muito além de ser apenas um órgão de assessoramento que produz recomendações e propostas. Pelo contrário, o artigo lhe confere uma atribuição de intervir na produção e no incremento de uma televisão de qualidade. Sabe-se que nenhuma lei em si muda de maneira automática problemas complexos de larga data. É a partir de um marco jurídico transformador que poderão ser revertidos os processos de expropriação de identidade e violência simbólica que orientaram as relações dos meios audiovisuais guiados por objetivos mercadológicos com a infância. A voz e a presença de crianças, adolescentes e jovens, de identidades diversas na televisão argentina, poderão ter lugar somente em condições promovidas por uma autêntica democratização das relações culturais e comunicacionais que reúnam os donos dos meios, os programadores e os adultos em geral. Todos esses atores devem aprender a escutar e a compreender crianças e adolescentes, antes de pretender “informá-los”, “educá-los” ou “entretê-los”. Esse Conselho Assessor para a Comunicação Audiovisual e Infância não deve ser visto somente como uma instância de monitoramento e assessoramento, já que constitui um passo decisório para a transformação ao articular-se com o fundo de fomento para a produção de programas de qualidade para a infância. Os canais de televisão estão começando a dar conta disto. Em alguns casos, com lentidão. Mas a presença e a voz do conselho estão fazendo com que aquela programação agressiva aos direitos de crianças tenha começando a se auto regular.

Mudanças na estrutura do poder da comunicação

A lei está em pleno vigor?

S.V. – A lei está em vigor, exceto o artigo 161, denominado de “desmonopolização” ou “desconcentração” da propriedade dos meios audiovisuais. Isto porque os grandes grupos que controlam a maior parte do mercado entraram com um recurso na Justiça contra sua aplicação. Estamos diante de um estigma para a Justiça Argentina. A causa está nas mãos de um juiz que, no passado, foi extremamente compreensivo com a ditadura e hoje está visivelmente ligado aos interesses dos grupos de mídia. O prazo para a desconcentração dos meios de comunicação, previsto pelo artigo, é de um ano a partir da sanção da lei, porém o processo está emperrado há mais de um ano por conta deste recurso. Evidentemente este embate é compreensível porque a aplicação do artigo supõe que os maiores grupos de mídia do país teriam que se desfazer de várias frequências/concessões de rádio e de TV. O grupo Clarín, por exemplo, teria que optar por quatro canais de TV a cabo entre os mais de 200 que possui.

Quais são as perspectivas?

S.V. – Mais participação social e maior democratização da comunicação no país. Mais canais, atores. Mais produção circulando, maior participação da cultura. Pela primeira vez, o sul do país vai conhecer a produção cultural e audiovisual do norte e vice-versa, o que parece mentira, mas de fato é a realidade. Também esperamos que as grandes mudanças na estrutura do poder político econômico e cultural da comunicação comecem a ser visualizadas nas televisões, não somente em relação a uma maior diversidade cultural de perspectivas, informações e opiniões, mas também em relação a uma maior qualidade de programação, e, consequentemente, de um maior desenvolvimento cultural da sociedade.

Acesse a página da Autoridad Federal de Servicios de Comunicación Audiovisual e leia a íntegra da Ley de Medios.

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[Marcus Tavares é professor e jornalista especializado em Educação e Mídia]