Enganam-se os que creem que só quem é livre desfruta da felicidade: os idiotas caminham felizes, justamente por serem prisioneiros da ignorância.
Nasci, cresci e me tornei adulto durante os governos militares. Na década de 1970, eu e meus amigos, um grupo de adolescentes, jogávamos bola num campinho de futebol da Tijuca, dentro do quartel da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro, onde funcionava o DOI-Codi. Ríamos, comemorávamos os gols, gritávamos de farra, longe de imaginar os pesadelos e as súplicas dos que passaram ou estavam presos ali. A vida no bairro era pacata, os jornaleiros exibiam notícias amenas e revistas pornográficas embaladas em sacos pretos. Na TV, muitos desenhos, novelas da Globo, o Jornal Nacional e o programa Sílvio Santos. No Brasil não havia racismo e acho que não existiam nem homossexuais. Melhor do que isso, Deus era brasileiro.
Na ditadura, não precisávamos pensar sobre questões complexas, não havia a necessidade de se discutir os direitos das minorias, direitos humanos e muito menos novos formatos de família. Vivíamos num oásis paradisíaco, sem conflitos sociais. Olhávamos com desdém o mundo desabando e mantínhamos a certeza de que no Brasil o caos não existia. A alienação era um narcótico poderoso, enxergávamos o país através de lentes coloridas e o amávamos. “Ame-o ou deixe-o”, o problema é que quem o deixava não embarcava para Miami.
Minha educação foi em colégio público; havia aulas de música e religião católica. Nas aulas de religião, retiravam os alunos judeus da sala e ficávamos sem entender o porquê disso. Hasteávamos a bandeira, cantávamos o hino todas as manhãs e eu adorava as aulas de Moral e Cívica. Tudo parecia luminoso e é assim que insiste em surgir na memória. Talvez seja daí que brote a nostalgia desavisada. A alienação é um vício capaz de causar dependência.
Não me surpreendo ao ver tanta gente clamando com saudade pelo retorno da ditadura, é uma espécie de Síndrome de Estocolmo, o refém que se afeiçoa pelo agressor. Afinal, nós vivíamos em Matrix e alguém nos convenceu a acordar. Estenderam duas pílulas, a azul e a vermelha, escolhemos a liberdade. Mas a cortina que escondia a sujeira não foi logo devassada; abriram devagarinho, pouparam a informação. Foram levantando o véu com a delicadeza dos que não sabem o que encontrarão sob ele.
Liberdade é respeito ao outro
Não, Deus não é brasileiro, esse foi o primeiro relâmpago que esbofeteou a minha inocência. Havia mais de um Deus, mais de uma religião. Homossexuais existem, são vítimas de violência e quando se casam não são reconhecidos como família. E o povo que recebe bolsa para sobreviver? Só reparamos a presença dessa gente depois que o Lula os resgatou da miséria absoluta. De repente, tantas questões para refletir, tantas realidades para encarar… Agora, por exemplo, querem criminalizar crianças, não querem salvá-las, educá-las. Decidiram que a solução é prender.
No meio do cenário caótico da confluência das ideias e da exposição dos preconceitos é que testemunhamos a solidez de uma boa democracia. Porém, algo não mudou: a mídia. A imprensa continua descarada e conservadora, dedicada a defender direitos corporativos, orientada pelo dinheiro, alimentando desprezo pelas camadas menos favorecidas, manipulando a política e avessa à imparcialidade. A imprensa, ao contrário do que se diz, poucas vezes esteve a serviço das causas relevantes.
Para o nosso bem, a liberdade de ponderar já provoca debates sobre a qualidade da informação, uma discussão que ocorre em escala mundial. Aqui, observamos a decadência dos jornais, demissões de jornalistas e intolerância com opiniões. É a crise de um jornalismo tacanho, covarde e medíocre. A grande imprensa brasileira é uma fábrica de conservadorismo, uma escola de burrices. Lançam a bandeira de uma PEC que reestabelece a exigência de diploma para jornalistas sem se dar conta que o sucateamento da profissão vai muito além disso. É lamentável conviver com a mídia desqualificada e anacrônica num momento tão lindo, em que começamos a olhar para tudo o que ignorávamos. Mídia que ainda parece acreditar que serve aos velhos generais.
Terminando de ler uma biografia de Carlos Castello Branco, aprendo que o jornalista não é militante, arauto ou porta-voz. O jornalista é um vigia habilitado com as qualificações básicas para descrever e analisar a realidade em curso. Jornalismo é a vocação irreprimível dos que são engajados com a verdade e defendem os valores democráticos. Ao despertar do torpor da ditadura, compreendi logo que a liberdade é, antes de tudo, o respeito ao outro, a aceitação do próximo, seja ele quem for. Para quem não alcançou esse entendimento, não tenho dúvidas: a liberdade oprime.
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Alexandre Coslei é jornalista e escritor