Deficiente físico, gay, homossexual assumido, portador de deficiência, filho adotivo, viciados em drogas, usuários de drogas, pobres, gordos, carentes, miseráveis. São muitas as palavras e expressões usadas diariamente por pessoas de diferentes classes sociais e também pela imprensa, em qualquer modalidade – seja na TV, no rádio, no impresso ou na internet. Há algum tempo, o politicamente correto vem ditando algumas normas para se referir às minorias e, também, à maioria excluída dos ditos padrões.
Os contrários ao uso dos termos politicamente corretos podem argumentar que a padronização de palavras em determinadas situações pode ferir o princípio da liberdade de expressão. No entanto, é preciso lembrar que uma cultura de respeito às minorias e aos excluídos também passa pela linguagem e esta tem o poder de rotular. E os rótulos podem causar prejuízo e sofrimento aos rotulados. Alguém ignora isso?
Uma pessoa que, em casa, de forma privada, usa expressões consideradas pejorativas, está inserida numa dimensão pequena e sem grande importância. Imagine a mesma expressão pejorativa usada na manchete de um jornal de circulação nacional, num telejornal em dito horário nobre ou na boca de um comentarista de rádio ouvido por milhões.
Neste sentido, a linguagem usada por comunicadores – do informativo ao entretenimento – tem uma responsabilidade maior. Neste caso, os profissionais não podem se dar ao luxo de usar o senso comum. Sua responsabilidade é pública e a repercussão do que diz é maior porque, inclusive, são formadores de opinião, podendo inclusive deformá-la. Infelizmente, isso é muito comum.
Cenário perverso
Muitas vezes, a mídia usa algumas especificações informativas, consciente ou inconscientemente, que no fundo podem revelar falta de cuidado com o texto e até mesmo preconceito. Por exemplo, muitos veículos de comunicação gostam de citar em manchetes e textos o beijo gay entre dois homens ou duas mulheres. Quando são celebridades, o tal beijo ganha ares de escândalo sexual e faz render ‘notícias’ por muitos dias. Aqui, valem duas observações. Primeiro: quando dois homens ou duas mulheres se beijam, está explícito que se trata de uma situação homossexual. Segundo, nunca lemos que, por exemplo, Brad Pitt e Angelina Jolie trocaram beijos héteros.
Portanto, ressaltar o beijo gay é uma especificação informativa que serve a nada, a não ser ao preconceito que os rótulos geram e viram munição para os preconceituosos de plantão. As palavras têm poder. E, em muitos casos, poder de diferenciar, de discriminar, de criar estereótipos, enfim de excluir. Isso também se aplica ao termo homossexual assumido. Afinal, alguém escreve heterossexual assumido?
A mídia, de modo geral, é campeã em fazer isso. O raciocínio acima pode ser aplicado também à adoção. A expressão ‘filho adotivo’ é um rótulo e gera uma diferenciação com os filhos não adotivos. Ou alguém já leu, por exemplo, que a Sacha é filha biológica da Xuxa? Na prática, existe alguma diferença entre um filho adotivo e um filho biológico? Somente se os pais quiserem reforçar esse aspecto. As diferenças, quando existem, podem ter como origem as frustrações ou a incapacidade dos envolvidos de educar seus filhos, independentemente da forma de concepção. Muitos podem alegar que o adolescente A é revoltado e se envolveu com drogas porque é adotado. No entanto, esses mesmos não alegam que o adolescente B é revoltado e se envolveu com drogas porque é biológico. Ou seja, o preconceito também gera mito que influencia a realidade.
O termo ‘adotivo’, na mídia – fora do contexto da adoção –, é rotularmente preconceituoso. Pior é quando o ‘filho adotivo mata os pais’. Aí, a adoção vira caso de polícia. Agora quando o ‘filho mata o próprio pai’, o termo biológico não aparece e a palavra ‘próprio’ ganha ares de legitimidade como se o pai não-biológico não exercesse legitimamente sua paternidade. Esse é um cenário sutilmente perverso, mas rotineiro nos veículos de comunicação.
Responsabilidade na comunicação
As intenções escondidas das palavras – ou seja, o significado social, descolado do significado literal – ainda podem ser verificadas com o termo negro/negra. Muitos a usam de forma pejorativa, não se dão conta e, portanto, não se importam. Afinal é uma questão cultural mesmo. O político de situação alega que a oposição quer denegri-lo. Uma das definições de Michaelis para denegrir é ‘1.Tornar(-se) negro ou escuro.’ Não seria melhor o político dizer e escrever que a oposição quer prejudicá-lo?
A ofensa a toda uma raça (tudo bem, muitos podem alegar que cientificamente não há raças, mas socialmente a divisão existe e persiste) ainda está presente em termos da nossa língua e é usada cotidianamente sem preocupação, como magia-negra – magia-branca é coisa do bem?; lista-negra – lista-branca é listagem de casamento?; passado-negro – é uma história cheia de problemas e conflitos? E passado-branco, o que seria?
A língua é viva, dinâmica e as palavras assumem significados diferentes conforme sua época. Tudo bem, ninguém fala nem escreve hoje como se falava e escrevia no Brasil em 1900, por exemplo. Se essas questões também passam despercebidas entre estudiosos, imagine então em segmentos populares. Nem dá para cobrar do cidadão que reflita sobre o uso da palavra e seus significados sociais. O mesmo não se pode dizer dos profissionais da comunicação, que têm muita responsabilidade (e influência) sobre o que produzem.
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Jornalista, mestrando em Comunicação e professor do curso de Jornalismo da Universidade Norte do Paraná (Unopar), em Londrina, PR