Reproduzido do Agência Fapesp, 29/12/2009
Uma pessoa é abordada na rua por um vendedor que oferece a assinatura de uma revista por três meses grátis. Animada, preenche o formulário e, no quarto mês, nota um desconto na fatura do cartão de crédito. Liga para reclamar e argumenta que pensou que só receberia durante três meses. O representante da revista responde: ‘Em nenhum momento demos essa informação. É você que deveria cancelar a assinatura para não ser descontado.’
A situação ilustra um tipo de truque que utiliza a nossa própria maneira de pensar, e até o nosso conhecimento, para nos enganar. Estabelecer um modelo lógico para essa relação é um dos trabalhos desenvolvidos pelo professor Walter Carnielli, do Departamento de Filosofia e do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Carnielli apresentou essa pesquisa no seminário ‘Raciocínio Baseado em Modelo em Ciência e Tecnologia’, realizado na Unicamp entre os dias 17 e 19 de dezembro no âmbito do Projeto Temático ‘Logical Consequence and Combinations of Logics – Fundaments and Efficient Applications’, apoiado pela Fapesp e coordenado por Carnielli. O evento teve parceria das universidades italianas de Pavia e de Siena.
O estudo é uma continuação do trabalho sobre lógica e argumentação que gerou o livro Pensamento crítico: o poder da lógica e da argumentação, lançado este ano por Carnielli em parceria com Richard Epstein, diretor do Advanced Reasoning Forum no Novo México, Estados Unidos.
‘Incapaz de querer prejudicar’
O exemplo da assinatura de revistas é usado pelo professor para ilustrar o problema. ‘Quero mostrar como alguém se torna vítima da própria inteligência ao ser enganado dessa forma’, contou. Segundo ele, o enganador acaba se munindo de argumentos lógicos ao não contar toda a verdade e o enganado é guiado por suas próprias inferências que não são incorretas, mas beneficiam quem pratica o engodo.
Carnielli explica que isso ocorre porque nas discussões e nos argumentos em geral se é chamado a utilizar o chamado Princípio da Discussão Racional ou Princípio da Caridade. ‘Para melhor levar adiante uma discussão ou um argumento temos de supor sempre o melhor dos outros, e acabamos concedendo ao nosso oponente a chamada racionalidade máxima.’
O processo não termina por aí. Depois de supor que o interlocutor tem pontos positivos e quer fazer o melhor, esse pensamento é aplicado por meio de um processo lógico chamado de consistência maximal.
Como exemplo, de volta à cena inicial. ‘Após acreditar no vendedor, nós tomamos a empresa que está oferecendo a revista como conceituada e de grande porte, portanto incapaz de querer nos prejudicar’, disse o professor da Unicamp.
Uma ‘situação pirata’
O lado irônico da pesquisa é que esse tipo de golpe costuma atingir as pessoas mais racionais e mais bem preparadas intelectualmente. ‘Cair no truque não é burrice, mas uma resposta racional a uma manobra maliciosa’, ressaltou Carnielli. Por terem um entendimento restrito da proposta, segundo aponta, indivíduos com menor escolaridade assumiriam menos suposições e, por consequência, menos riscos nesse caso.
Falácias desse gênero são utilizadas frequentemente para fazer consumidores adquirirem produtos que não querem, pagar por itens adicionais que não foram solicitados e arcar com ônus que não foram explicitados em uma contratação.
Por isso, Carnielli acha que esse tipo de truque deveria ser previsto na legislação. ‘Isso é pior do que mentira. O mentiroso deve se preocupar com a verdade para tentar escondê-la, enquanto os embrulhões criam uma `situação pirata´ que se afasta da lógica, mas nos forçam a usá-la a seu favor’, destacou.
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