Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A longa história das ‘pernas curtas’

No Brasil, a introdução de ‘primeiro de abril, dia da mentira’ deu-se em Pernambuco, no dia 1º de abril de 1848, com a estréia do jornal A Mentira.

O periódico começou com uma grande ‘barriga’, como se diz na imprensa para designar uma informação falsa. Trazia a notícia da morte de D. Pedro II. A propósito, como seu tutor o liberava para brincar? Como não existia ainda a Xuxa para cantar ‘tá na hora, tá na hora,/ tá na hora de brincar,/ pula-pula, bole-bole,/ se embolando sem parar’, ele deveria chamar o menino de Pedro ou Pedrinho, mas seu nome completo era Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Bragança e Habsburgo.

O imperador Pedro II, acompanhado de todos os outros nomes que tinha, somente viria a morrer dali a 43 anos, em Portugal, no dia cinco de dezembro de 1891, já deposto, evidentemente, pois a República tinha sido proclamada a 15 de novembro de 1889 e ele rumara para o exílio.

A Mentira desmentiu a notícia do falecimento do imperador no segundo número, dia dois de abril de 1848. Como aconteceu a tantos jornais brasileiros, o jornal durou pouco: também teve pernas curtas, como diz o ditado italiano le bugie hanno le gambe corte (as mentiras têm as pernas curtas).

O jornal foi acumulando dívidas e mais dívidas e circulou pela última vez no dia 14 de setembro de 1849. Na última edição, marcava uma reunião com os credores, a realizar-se no dia 1º de abril de 1850, mas não existia o endereço indicado.

O menor Estado do mundo

Contudo, o folclore de primeiro de abril é de procedência francesa e remonta ao ano de 1564, quando o rei Carlos IX determinou que o ano começasse no dia primeiro de janeiro, em obediência ao calendário juliano – já adotado por vários países –, assim chamado porque o imperador Júlio César mudara o início do ano: de primeiro de março para primeiro de janeiro.

Porém, como quem realmente mandava na corte de Carlos IX era sua mãe, Catarina de Médicis, que o instigou à matança da noite de São Bartolomeu – ocorrida a 24 de agosto de 1572, quando cerca de 3 mil protestantes foram assassinados em Paris por uma turba de católicos enfurecidos –, a ordem para começar o ano no dia primeiro de janeiro de 1565 demorou a pegar e só começou a ser cumprida em 1567. Foi então que nasceu o costume de mentir no dia primeiro de abril, fazendo-se de conta que era ainda a passagem do Ano Novo do calendário até então adotado, entretanto já prescrito, pois o ano começava em primeiro de janeiro por força da mudança determinada pelo rei.

O calendário gregoriano, assim chamado em homenagem a quem o instituiu, o papa Gregório XIII, foi imposto em 1582 e começou aos poucos a imperar pelo mundo afora.

Até então eram adotados diversos calendários e em muitos países o ano-novo começava em dias diferentes, sendo mais comum começar no dia 25 de março. Os festejos de ano-novo duravam uma semana e terminavam justamente no dia primeiro de abril.

Célebres mentiras já foram pregadas na data, inclusive na imprensa, como a de que a minúscula república russa de Djortostão doara seis metros quadrados de seu território a uma república vizinha para arrebatar do Vaticano o título de menor Estado autônomo do mundo.

Uma não-mentira trágica

O escritor Bernardo Guimarães era contumaz pregador de mentiras de abril. Em 1851, aproveitando- se de que o colega Álvares de Azevedo andava muito pálido, organizou seu velório, com a aquiescência do falso defunto, também brincalhão. Recolheu numerário para as despesas funerárias e, em companhia de outros colegas, foi refestelar-se numa taberna de São Paulo. Quando os doadores descobriram a mentira, já era tarde. E quem apareceu na festa foi o fantasma do poeta, dizendo: ‘Eu faço o papel de morto para vocês se banquetearem? Vou também regalar-me.’

Álvares de Azevedo, então com 19 anos, morreria de tuberculose em outro abril, dia 25, dois anos depois.

Bernardo de Guimarães mentia tanto que certa vez chamou o médico para atender o filho que havia tomado veneno e o doutor pensou tratar-se de mais uma mentira. O moço morreu e o autor de O Seminarista e A Escrava Isaura caiu numa depressão da qual nunca mais se recuperou.

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Escritor, doutor em Letras pela USP, professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra; www.deonisio.com.br