O ano de 2010 está sendo considerado pelas associações de historiadores profissionais o momento decisivo de uma longa luta pela regulamentação da profissão de historiador. Em agosto do ano passado, o senador Paulo Paim (PT-RS) apresentou o projeto de lei do Senado 368/2009 que visa a contemplar as demandas da categoria. Curiosamente, na mesma época, assistíamos à desregulamentação profissional para o exercício do jornalismo no Brasil. Essa situação paradoxal me interessou especialmente, visto que há algum tempo venho refletindo sobre algumas das (im)possibilidades de articulação entre a história e o jornalismo.
No fim de 2009, lancei pela Edusc o livro Máquina da Memória – Almanaque Abril: o tempo presente entre a história e o jornalismo. Gostaria de compartilhar com os leitores do Observatório da Imprensa algumas das conclusões a fim de contribuir para os debates, reflexões e lutas em curso. Mas também acerca das relações tensas, plurais e relevantes entre historiadores e jornalistas.
O livro pretende compreender e explicar o sucesso e a popularidade de um dos mais bem-sucedidos anuários jornalísticos que, em sua campanha publicitária de 1984, definiu-se como uma máquina da memória – o Almanaque Abril. O que era lembrado e o que era esquecido por esse livro-máquina? A partir dessa questão-problema, procurei pensar sobre algumas outras: como jornalistas e historiadores usam o passado, abusam dele e o representam? Os historiadores detêm o monopólio do passado? Por quais razões uma história dita factual, tradicional e cronológica é desejada e solicitada pelos leitores de textos históricos?
‘Trabalho de luto’
Na medida em que estudávamos a relação que o Almanaque estabelecia com outros saberes, percebemos que nosso trabalho procurava pensar a pluralidade dos modos de representação do passado no presente histórico, tendo em vista a transformação da história em memória e vice-versa. Partindo da hipótese de que a história no Almanaque Abril está situada no cruzamento entre o discurso jornalístico, o conhecimento histórico acadêmico e a história ensinada, procuramos analisar a permanência de uma história dita ‘positivista’ nas páginas da publicação. Buscamos mostrar que, no Almanaque Abril, a história era uma representação do passado ‘controlada’ pela cronologia. Esta, como a principal marca de historicidade que a publicação utilizava, era um elemento fundamental no estabelecimento do ‘contrato de verdade’ entre a obra e o leitor. Essa representação do passado era, entretanto, imbuída de autoridade e tensão, uma vez que o próprio Almanaque mostrava, ao introduzir boxes explicativos, que a análise puramente cronológica era insuficiente para compreender a história. Essa ambigüidade, também presente nos dilemas referentes ao ensino de história, foi importante para a construção da legitimidade da publicação frente a alunos e professores de história.
Foram feitas algumas análises de como os historiadores e o Almanaque Abril trataram os eventos históricos, a partir de uma divisão possível do tempo presente entre ‘tempo acabado’ e ‘tempo inacabado’. O ‘tempo acabado’ corresponde à ‘história do passado próximo’, período onde se começa a consulta aos arquivos, onde ainda há memória de vivos e os historiadores profissionais começam a ter ‘monopólio da história’. E o ‘tempo inacabado’, à ‘história contemporânea’, momento onde se ainda está na onda de choque do ‘evento traumático’, onde o evento busca sua denominação e onde os diversos grupos interessados em construírem representações do passado entram em ‘conflito’. Nele, a dificuldade não é simplesmente conceituar bem, mas fazer corretamente o ‘trabalho de luto’, tanto por parte dos jornalistas, como por parte dos historiadores.
Fazemos história porque somos históricos
Concluímos que é necessário, pelo menos para os historiadores, compreender e aceitar a pluralidade irredutível das histórias. Desse modo, mostramos que a publicação incorporou uma produção historiográfica legítima. O texto do Almanaque foi nutrido, muitas vezes, por conceitos e discussões consagradas, cristalizadas pela historiografia. Mesmo que o jornalista, ou o consultor do capítulo de ‘História’ do Almanaque, pretendesse imprimir uma objetividade à narrativa, esta por si mesma – e pela cronologia que lhe servia de base – já implicava, implícita ou explicitamente, um viés interpretativo por parte da publicação. O objetivo era explicar o que aconteceu!
Na medida em que o tempo em nossa sociedade é entendido como uma continuidade, provavelmente uma das funções do Almanaque era (e ainda parece ser) dar chaves de acesso para pensar o devir, pois sua narrativa histórica poderia contribuir para compreender e explicar os eventos futuros. Talvez seja por esse motivo que uma concepção de história tradicional seja desejada pela sociedade: ela conforta o homem, pois dá o sentido de continuidade à história e à existência! Afinal, como nos ensina José Saramago, ‘sem o futuro, o presente não serve para nada, é como se não existisse’. De qualquer maneira, os efeitos políticos de uma concepção de história continuista podem não ser positivos de uma perspectiva progressista. Daí surge uma questão que une historiadores e jornalistas: como articular continuidade e descontinuidade.
De algum modo, nosso trabalho nos mostrou que, por mais que nós, historiadores, nos esforcemos por monopolizar as relações do homem com o passado, elas extrapolam os objetivos e funções do nosso campo. A pluralidade das representações do passado no presente, que perpassa as páginas do Almanaque e que está na confluência entre o saber histórico escolar, o saber histórico acadêmico e o jornalismo, responde a diversas demandas e lógicas desse ser histórico que é o homem. Essas representações acrescentam dimensões existenciais à vida dos homens. Elas podem ser apropriadas de forma singular por cada indivíduo e/ou grupo, e servem para estruturar nossa vulnerável condição histórica de existir e de ser no mundo. Afinal, nós fazemos a história e fazemos história porque somos históricos.
Responsabilidades coletivas
E é exatamente por fazermos história que penso que a profissionalização do ofício do historiador é necessária. A história enquanto escritura pode até extrapolar o campo da história, mas, apesar disto, é preciso que se procure apreender em instituições formais a lidar e construir representações do passado comprometidas com a verdade ou pelo menos a verossimilhança do que ocorreu. Tal fato não precisa excluir a transgressão de fronteiras disciplinares, mas possibilita a criação de melhores condições práticas e materiais para seu exercício, sobretudo em espaços diretamente ligados à formação para a cidadania: no exercício do magistério na escola básica e em instituições de memória/patrimônio.
A regulamentação profissional da história não está diretamente relacionada com o desejo de ‘monopolizar’ o passado. Ela deve ser defendida como uma busca de construção e consolidação de direitos em campos de trabalho vulneráveis e desvalorizados. Mas não existe ‘regulamentação’ capaz de substituir o compromisso ético e político por parte de historiadores e jornalistas. Desse modo, tal regulamentação poderá nos auxiliar a debater de forma mais lúcida e politizada (como creio que deveria acontecer com os jornalistas profissionais) as responsabilidades do historiador expert e as funções sociais da história-disciplina. Creio, ainda, que a defesa da profissionalização da história e do jornalismo é uma forma de criarmos também responsabilidades coletivas.
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Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)