Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A médica, o twitter e o jornalista

Ser jornalista é como ser juiz. Em algumas ocasiões, as duas funções se assemelham. O juiz quando decide, agrada um lado do conflito e, desagrada o outro. A parte vencedora vai achar que a justiça foi feita. O perdedor, dirá que foi vítima de uma injustiça. No jornalismo também é assim. Uma matéria-denúncia deixa o denunciante mais aliviado de uma eventual injustiça e, o denunciado, revoltado.


Às vésperas do Natal, assisti a uma reportagem na TV que me deixou com lágrimas nos olhos. Vi o desespero de uma mãe, com um filho de 8 anos nos braços, que teve um olho perfurado com um graveto, correndo em vários hospitais de emergência em busca de socorro. A via crucis daquela mãe durou quase 24 horas. Os oftalmologistas que deveriam estar de plantão não apareceram naquele dia para cumprir sua obrigação.


A criança só foi operada no dia seguinte. Por causa da longa espera pelo socorro, terá uma sequela irreversível. O líquido do olho (humor vítreo) da criança vazou e ela corre o sério risco ficar com o olho murcho.


A falta de médico em hospital público é problema recorrente. As redações recebem reclamações às toneladas, todos os dias.


Atendendo sucessivas reclamações de ouvintes, resolvi sugerir aos nossos colaboradores da Rádio CBN Manaus, uma série de visitas às Unidades Básicas de Saúde – UBS, também conhecidas como ‘casinhas de saúde’. Recomendei que fossem flagrantes, com a verificação da presença e assiduidade do médico e a opinião dos pacientes que estivessem aguardando atendimento.


Qual foi nossa surpresa. Das 7 ‘casinhas’ visitadas, não encontramos um médico sequer. Tudo com transmissão ao vivo.


Fomos informados pelo secretário municipal de Saúde, Francisco Deodato, que os médicos das UBS, recebem 10 mil reais de salário por mês, convenhamos, um excelente salário, para ter dedicação exclusiva, ou seja, com expediente das 8 as 12 e das 14 as 17 horas. Expediente semelhante ao da grande maioria dos trabalhadores brasileiros.


Na ‘casinha’ do Campo Dourado, um dos bairros mais pobres de Manaus, sem água tratada, saneamento básico, luz elétrica regular e, onde circulam centenas de crianças subnutridas e atingidas por verminoses, coceiras e pela falta de amparo do poder público, constatamos uma situação dramática. Segundo depoimentos dos moradores, vizinhos da ‘casinha’, desde setembro eles aguardam uma consulta com a médica que deveria estar lá, todos os dias, em tempo integral.


Dependência obsessiva


A reportagem foi gravada na manhã da segunda feira (4/1), primeiro dia útil de 2010, após as festas e os prolongados feriados de fim de ano. Neste mesmo dia, no início da noite, recebi o telefonema de uma amiga, cuja profissão é a promoção da justiça pública. Naquele momento, minha amiga fazia o papel de advogada da médica acusada de não atender pacientes deste setembro do ano passado. Vejam o disparate.


Primeiro, a ‘advogada’ tentou justificar que a médica não se encontrava no local de trabalho na hora da reportagem, porque estava naquele mesmo momento, apresentando o relatório de suas atividades ao Distrito de Saúde da Cidade Nova. Mais tarde viemos comprovar que o tal relatório, naquele momento, não existia, era apenas uma desculpa para uma ‘gazeta’ básica. Depois, minha amiga pediu que nós levássemos em consideração o fato de a médica acusada de desídia estar grávida. Ponderei dizendo que gravidez não é doença nem incapacita a médica a fazer simples consultas, atividade que não exige nenhum esforço físico. Também argumentei que a médica, pela formação que tem, saberia o momento exato de suspender os trabalhos para se dedicar ao sublime ato de ser mãe.


Fui informado que apenas no dia 6 de janeiro, três dias após nossa reportagem, a médica ingressou com atestado médico na SEMSA, de três dias, a contar do dia 5, para os exames pre-natais. Logo, na segunda feira, dia 4, ela deveria estar no posto médico para atender suas pacientes, pelo menos aquelas que aguardavam pela consulta desde setembro, ouvidas pela reportagem da CBN.


A reportagem foi ao ar na terça feira (5/1). Horas depois, recebi um CD, enviado por um ouvinte, contendo mais de 200 páginas do twitter da médica acusada de deixar os pacientes à espera por uma consulta desde setembro.


Fiquei perplexo e impressionado com a assiduidade e a quase-obsessão da médica pelo twitter, o site de relacionamentos que é febre mundial. A atuação da médica no twitter faz inveja a qualquer adolescente viciado em internet. Os tweets dela são diários, seguidos, de manhã, de tarde, de noite, de madrugada.


Fiquei imaginando e me perguntando se no meio de tantos tweets e hashtags haveria tempo para a família. Pensei também como é que uma pessoa que tem a obrigação de trabalhar pelo menos sete horas num posto de saúde, pode ficar nessa dependência obsessiva pelo twitter. Como será o convívio entre o twitter, dezenas de seguidores e os pacientes doentes.


Uma tuitada entre uma consulta e uma dipirona receitada, outra tuitada e a dica para uma mãe combater a taenia solium (também conhecida como solitária) do filho barrigudo.


Deve ser uma loucura esse convívio.


À míngua


Depois me perguntei. Será que lá no bairro Campo Dourado, onde não há sequer água encanada, existe internet? Depois me lembrei que a médica pode ter um modem sem fio. Essa tecnologia moderna permite as tuitadas, nos escritórios, nos shoppings, nos consultórios, inclusive nas casinhas de saúde, mesmo aquelas localizadas nos locais mais longínquos, os quais também são chamados popularmente de ‘onde o vento faz a curva’.


Voltei a falar com minha amiga. A ‘advogada’ da médica tuiteira. Descobri que ela também é tuiteira (só nas horas vagas). Ambas são seguidoras uma da outra. Talvez, por isso, minha amiga tenha me ligado para defendê-la fervorosamente da acusação de desídia.


Fui acusado de ter sido injusto, de ter atacado uma mulher grávida que ‘trabalha todos os dias’, cuidando daquelas crianças cheias de verminoses com suas respectivos mães também doentes. Voltei a lembrar que gravidez não é doença. Os doentes eram os pacientes da médica tuiteira.


Indaguei minha amiga por que ela, habituada a promover a justiça, defendia tão cegamente a médica acusada de deixar seus pacientes morrendo à míngua. Ela respondeu-me que tem vocação para ficar do lado dos mais fracos, insinuando que eu, com a Rádio CBN, éramos o lado forte da relação, enquanto a médica estava do lado da hipossuficiência.


À espera da consulta


Ser chamado de injusto é algo que me incomoda muito. Para livrar-me dessa pecha, lancei um desafio à minha amiga: ‘Vamos juntos, eu e você, visitar o bairro Campo Dourado. Vamos conversar com os moradores. Você escolhe a casa. Vamos bater na porta e ouvir a opinião deles sobre a assiduidade da médica e o zelo profissional dela’. Comprometi-me a pedir desculpas de público e fazer a devida reparação à médica, caso se confirmasse qualquer injustiça que tivesse sido praticada contra a amiga dela, por mim e pela CBN.


Insisti na proposta. Infelizmente, minha amiga não topou. Não sei por quê.


Desse episódio todo, cheguei à seguinte conclusão. Acho que cumprimos nosso papel social. Fizemos com que a denúncia dos moradores do Campo Dourado chegasse ao conhecimento das autoridades. A SEMSA abriu sindicância para apurar porque as 7 unidades de saúde visitadas pela CBN estavam sem médicos.


Minha amiga deve ter ficado com raiva de mim. Talvez eu não tenha tido a competência para convencê-la de que, na relação entre o paciente, a médica grávida, o twitter e o jornalista, o lado fraco, o hipossuficiente, é o doente que ainda continua aguardando por uma consulta. Se o twitter deixar.


 


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Jornalista, advogado e diretor de Jornalismo da Rádio CBN Manaus.