Os casos ocorridos na Áustria, de confinamento de mulheres em porão, além de estarrecedores, põem em evidência o papel da mídia na divulgação de ‘monstros’ humanos. Na história da humanidade, sempre ocorreram comportamentos doentios de seres pervertidos agindo na contramão das culturas identificadas por códigos sociais estabelecidos com padrões civilizatórios.
Quando vêm à tona episódios tão intensamente bárbaros, veiculados e esmiuçados na imprensa, com requintes de novela policialesca, há que se perguntar até que ponto e em que medida é controlável ou não, possível ou necessário divulgar os passos da barbárie, sob alguns pontos de vista, tal a sua repercussão no emocional de um público diverso, cujo inconsciente reage de modo muitas vezes imprevisível.
A matança de crianças indefesas, supostamente por seus pais ou responsáveis, ou de abuso sexual e encarceramento de uma filha, como aquele praticado na Áustria pelo engenheiro Josef Fritz, que manteve a filha sob seu jugo, por 24 anos, encerrada num porão, e com ela teve filhos incestuosos geneticamente marcados pela insanidade, trazem à baila o nível de descompensação animalesca que um ser dito humano pode demonstrar – para o horror de leitores, ouvintes, espectadores e internautas que se posicionam, em conseqüência, com a natural revolta e asco.
Sem restrições
Clama-se por justiça e nessa hora as pautas se sobrecarregam de entrevistas com peritos criminais, psicólogos experientes, profissionais que tentam, exaustivamente, explicar os trâmites da mente humana desviada da vivência social considerada normal, ou o andamento legal para que se indicie, julgue e condene os autores de crimes tão hediondos praticados contra pessoas incapazes ou impossibilitadas de se defenderem ou mesmo gritarem para serem acudidas no auge do seu sofrimento.
O rapto e aprisionamento por 8 anos de Natascha Kampush, também ocorrido na Áustria, e de cujo cativeiro a jovem conseguiu fugir há dois anos, rende notícia ainda hoje, uma vez que ela é alvo constante de assunto na mídia mundial, e, agora, chegou a se pronunciar para ajudar na reintegração dos filhos que o ‘monstro’ Josef teve com sua própria filha e que nem sequer podiam ver a luz do sol, durante anos.
O fato principal é que nos acostumamos a histórias de terror filmadas pelas boas produções cinematográficas, mas quando a mídia nos traz esse lado negro do comportamento humano, como um fato real, o caminho entre a ficção e a realidade assume proporções assustadoras.
Por maior cuidado que a imprensa tenha em apresentar ‘monstros’ humanos, gera-se, principalmente nas crianças, consumidoras que são da informação que lhes é franqueada sem restrições, um misto de medo e ódio, com a implantação da descrença na própria evolução da espécie como um todo.
Algo de podre
Nada é mais forte do que as imagens de dramas tão vultosos aos olhos infantis. Monstros de lendas sempre serviram para frear comportamentos dito ‘errados’ na formação das crianças em quase todas as culturas. Mas a preservação de anjos protetores bons e cuidadosos sempre se supunha mantida para os pais, professores e cuidadores de infantes, incluindo médicos, preceptores, religiosos, familiares e amigos.
Entretanto, a avalanche de notícias põe em dúvida o processo sólido de amor e dedicação que um pai ou mãe, presumivelmente inseridos na sociedade organizada, e nos faz questionar sobre a responsabilidade na confecção das reportagens, não apenas sob o ponto de vista de sua riqueza de detalhes fantasmagóricos (embora reais), mas ao seu aspecto sócio-formador de caráter num mundo extremamente violento, que parece fugir da razão e embrenhar-se na loucura, na mentira, no desvio das leis e no escárnio aos preceitos familiares básicos.
Há algo de podre no reino da Áustria, na classe média paulistana, na sociedade americana, na periferia miserável das grandes cidades espalhadas no mundo inteiro, nos confins da fome da Ásia ou África, nos campos de batalha de guerras como a do Iraque, nos porões das prisões onde a injustiça mantém encarcerados supostos ladrões de galinha enquanto fraudadores de grandes fortunas ou assassinos cruéis escapam ilesos à custa de bem-pagos advogados especializados em ganho de causas em tribunais de júri.
Responsabilidade da mídia
Sabemos que a mídia é industrial, vive do produto chamado informação e que há interesse generalizado por assuntos como esses. Mas não custa repensar sua diversidade de papéis, enquanto formadora de opinião, não só por meio de um jornalismo atento e denunciativo mas, sobretudo, de um equilíbrio necessário para que os ‘monstros’ não se tornem heróis às avessas, deflagrando, além da imensa revolta, um efeito-dominó de imensa descrença na humanidade como um todo.
Vale o contra-ataque com a emissão de matérias baseadas em pautas de bons exemplos, como antídoto necessário para que se atenue os efeitos desastrosos de uma enxurrada de tantos desamores em doses cavalares nas veias do público em geral. Que tal aproveitarmos para trazer para as primeiras páginas também manchetes sobre pais que adotam e fazem felizes seus muitos filhos, mães que protegem e são abnegadas, trabalhos sociais sérios de associações em prol de órfãos, idosos e carentes?
Os editores conscientes saberão repensar o peso do bom e do mau nos seus espaços, levando em consideração não somente o índice de vendas ou de interesse dos seus públicos, mas o grau de esperança que ainda é possível infundir nas mentes que são influenciadas pela mídia – que precisa acordar para o seu papel mais importante, além de noticiar, que é se responsabilizar pelos efeitos e desdobramentos emocionais de um noticiário mal dosado.
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Jornalista, Rio de Janeiro, RJ