Ficará cunhada para a história como ‘a miopia de Kupfer’ a pandemia anestésica de articulações sobre os motivos, irracionalidades e culpados do que equivocadamente se denominou como a crise econômico-financeira de 2010. Em número redondo fica melhor, e também não porque foi no ano de 2010 que a crise chegou ao fim, mas porque os economistas foram dizimados exatamente naquele ano e, aí sim, só por isso a crise terminou, o mundo melhorou, a fome acabou, o analfabetismo foi extirpado também, a cura do câncer foi encontrada etc, etc.
Mas, afinal, o que é ‘a miopia de Kupfer’ e por que o jornalista José Paulo Kupfer emprestou o seu nome involuntariamente à tal pandemia? Antes de tudo, por que anestésica?
(Alerta aos convencionais: não iremos por partes. Para entender, entre na força centrífuga deste artigo que gira na velocidade daquele acelerador de partículas que ainda estão consertando depois do seu fracassado segundo de funcionamento no dia da inauguração. A boa notícia é que vai doer sim, mas será rápido.)
Kupfer escreveu um artigo em que acusa o mundo etéreo de finalmente descobrir os responsáveis pela crise. Ele relembra que na semana que passou muitos articulistas ‘começaram’ a discutir a deterioração do pensamento hegemônico entre os economistas de plantão; mais difuso do que isso não era impossível, então ele trouxe à tona, no mesmo artigo, dois outros artigos, um de Delfim Netto, provecto economista e eterno ministro que, por sua vez, havia baseado uma análise prolixa em outro artigo originariamente publicado em inglês e, segundo Kupfer, traduzido livremente (um eufemismo para amenizar qualquer mordida na língua). Para quem não teme forças centrífugas, aí vamos nós.
Visão do mal
Mais da metade da população do planeta passa dificuldades em exatamente todas a áreas da vida humana: viveu mal no passado, sua prole vive mal, subnutre-se, educa-se inadequadamente, aglomera-se sem ordem e consenso, perde-se da família, acomete-se de inúmeras síndromes, adoece por ignorância , transporta-se desumanamente, trabalha quando e onde pode, recebe o que lhe pagam, não o que merece (e não se trata da mais valia, porque isso nunca foi bem assimilado por ninguém), e, pior do que tudo, adquire hábitos e costumes estimulada pelas projeções de ereção do PIB – e é aqui que entram em cena os pseudo-culpados. Enquanto tudo isso acontece, os teóricos irresponsavelmente anestesiam-se com suas próprias teorias, infensos àquela prole, insensíveis ao seu sofrimento. Por teóricos entenda-se não só os economistas, como quer Kupfer, daí a tese da ‘miopia de Kupfer’, mas todos os articulistas, de plantão e part time. A propósito, naquele extermínio que culminou com o fim da crise, tentou-se exterminar também os articulistas, mas a maioria escondeu-se. Fazer o quê?
Em dado momento do artigo, Kupfer afirma – e não fica claro em qual artigo ele se baseou – que ‘em lugar de tentar entender como funciona o sistema econômico, o economista tenta ensiná-lo como deveria funcionar em resposta à beleza dos seus axiomas’.
A princípio parece um silogismo esclarecedor, mas não passa de mais uma tragada de anestesia pós-cópula virtual.
Então, vamos colocar os pingos nos is: a pandemia de anestesia foi gerada por esta tendência dos articulistas, baseados em suas fontes inspiradoras (economistas neoclássicos, arcaicos e de todos os tempos), especularem em vez de sinalizarem claramente a cura para o mal, para a crise. Assim inspirados, criam uma panacéia de linhas e mais linhas publicadas sem nada resolver – pior do que tudo, sem nada informar de concreto, posto que arvoram-se (do verbo esconder-se atrás da árvore) em torno do pendão do jornalismo, escola em declínio.
E, por fim, miopia porque não há ninguém para lhes abrir os olhos para o que é realmente a crise, pois, ora, se não enxerga o que é o mal, a crise, como extirpá-lo, atacá-la?
Percepção deturpada
A crise que vivemos, nós que representamos mais da metade da população do planeta, é a da incapacidade de um progresso regressivo, ou regresso progressivo aos princípios básicos da sanidade coletiva, da sociabilidade e, fundamentalmente, de reedificação do caráter de cada um de nós, inclusos, neste caso, com a senha para serem atendidos em primeiro lugar, aqueles economistas e articulistas.
Atingimos o status quo onde se vende de tudo à moda stream line, numa esteira sem contato pessoal, massivamente, da goma de mascar ao telefone celular, ao empréstimo bancário. Não importa que a comercialização de bilhões de minutos de telefonia venda agregados estilos de vida e hábitos que levem à … (me ocorrem muitos exemplos) pedofilia, ao uso de drogas, alcoolismo, desequilíbrio do núcleo familiar. Não importa que um blog ou website de alto tráfego ou as páginas pré-formatadas de revistas e jornais impressos vendam junto com o seu conteúdo tudo aquilo também, que junto aos Ipods agreguem-se o vírus da necessidade de algo que não é necessário – do modo lingüístico às maneiras de relacionamento, à percepção deturpada e deteriorada entre as pessoas de eras distantes. Aliás, esta pequena distinção era feita naturalmente, pelo simples hábito de se ensinar ‘em casa’ que, ‘primeiro os mais velhos’, e assim por diante.
Para a história
Do lado dos vendilhões do templo, leia-se articulistas e economistas compromissados com seus periódicos e clientes, todos sabem, por exemplo, que no momento em que eclode a consolidação da indústria farmacêutica, na mão de três ou quatro laboratórios, quem manda é a bolsa de valores, o JP Morgan e dois ou três grupos financeiros, ligados indiretamente ao próprio JP Morgan.
Ah, o raciocínio pulou de alhos para bugalhos? Então tome: todos sabem que das quatro agências de notícias do mundo, nenhuma é isenta em relação às demais, societária e financeiramente falando, dependentes de grupos de comunicação, dependentes por sua vez de anunciantes e assim por diante. Por essa linha chega-se ao desenho de uma única mão que manipula o todo aqui embaixo. Ora, os economistas e articulistas não passam de míopes pensando que influenciam aqui e acolá. Influenciam nada, no máximo atrapalham.
Esta mesma mão nos alimenta goela abaixo com as substâncias cancerígenas descritas em letrinhas miúdas nas costas das embalagens de comestíveis, lácteos, guloseimas, classificações essas e outras conhecidas apenas nos bastidores dos fabricantes, e publicitários; que nos alimenta com produtos irradiados e ou geneticamente modificados; e, quando ficamos doentes, nos remedia pelas pesquisas direcionadas para aquelas balas mágicas que não matam, não curam, muito pelo contrário, mantêm a vida, apenas, porque quanto mais prospects melhor, de qualquer idade – tudo em prol do ganho de escala, fomentado pelas projeções de um PIB eréctil.
De modo que (para utilizar uma expressão de idoso) a ‘miopia de Kupfer’ é isso. Mas pode ser também a perversidade de não se atacar o que deve ser atacado, no dia-a-dia, por conta de uma posição profissional, status, salário, vaidade, covardia, mediocridade, vontade de poder, ganância. E isso ficará cunhado para a história.
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Escritor e jornalista; seu blog