Há uma passagem no livro II da República de Platão que conta de um anel que um sujeito chamado Giges encontra e descobre por acaso que é mágico. Girando-o, fica invisível quem o porta. ‘Assim senhor de si, logo fez com que fosse um dos delegados que iam junto ao rei. Uma vez lá chegado, seduziu a mulher do soberano, e com auxílio dela, atacou-o e matou-o, e assim se assenhoreou do poder!’. É certo que esse roteiro tem graves problemas (por exemplo: como assim, ‘seduziu a rainha’? Só porque estava invisível, como se fosse Sigfried possuindo Brunilda no lugar de Günther? Mas deixa pra lá), entretanto tem uma moral da história que nos interessa. É o seguinte: se não somos vistos (e nem pegos em flagrante) não agimos moralmente (corretamente), é o que Gláucon tentava fazer Sócrates, o teimoso, engolir.
Filosofia moral é um troço complicado e certamente não se resume nisso – ser ou não ser pego. Mas, convenhamos, é um bom ponto de partida. Sendo no mundo com os outros, e nunca sós, praticamente inexiste ação que não tenha implicações para esse estorvo – o outro. E é ele, e não eu (nós) que determina minha (nossa) consciência moral. De duas maneiras, uma nobre e outra nem tanto. A nobre é que tenho que pesar tudo o que faço para não prejudicar o outro. A nem tanto é que tenho que pesar tudo que faço pra que o outro não descubra.
Esse segundo quesito ganhou, desde os tempos do rei lídio que seduziu uma rainha só porque era invisível (velhos e inocentes tempos…) um ingrediente potencializador da receita: a imprensa. Se alguém entrar no Palácio do Planalto, tentar seduzir dona Marisa (hipótese, hipótese!) e for pego em flagrante, não só não se tornará presidente, como aparecerá em todas primeiras páginas de jornais em poses desairosas, ostentando belas e apertadas algemas. Passamos a ter, então, uma voz exterior de vários decibéis pronta a nos apontar o poderoso dedo com um anel de Giges ao contrário, que dá visibilidade máxima à besteira que porventura fizermos.
No caso dos homens públicos (servidores públicos concursados mais graduados, servidores públicos eleitos e celebridades diversas) isso é particularmente verdade. Seus atos serão vigiados na proporção de seu papel no jogo social-político. Um vereador de uma cidade de 1.000 eleitores menos do que o da capital, um juiz menos do que um desembargador, um jogador de timinho menos do que um de timão, um prefeito qualquer menos do que o presidente etc.
Boa pergunta
Embora os servidores públicos concursados e as celebridades eventualmente dêem (mau) exemplo nas páginas dos jornais e revistas, são os servidores públicos eleitos (mais conhecidos como políticos), portanto, justamente os escolhidos por nós, os recordistas em freqüência negativa na imprensa. É a regra. E se exceções há só servem para a confirmar. O que cria uma classe de gente diferente, que distorce toda minha teoria moral. São pessoas imunes à indignação alheia. Não sabem o que é ‘sentimento de culpa’. Levam uma cusparada na face direita e o que fazem? Oferecem a outra.
Episódios recentes atestam isso. Como se não bastasse o escândalo do mensalão e caixa dois (e caixa três, quatro, cinco…) envolver praticamente todos os partidos e com isso permitir acordos espúrios na calada da noite, escancarados na manhã seguinte pelas manchetes indignadas dos jornais, mas nem por isso constrangendo seus protagonistas, assistimos agora a um deprimente espetáculo de total falta de vergonha na alma. Quem ouvisse o informativo da Câmara no rádio (sim, eu ouço!) logo após a votação da diminuição das férias de 90 dias e extinção do pagamento por convocação extra, ficaria espantado com a grita dos nobres (?) deputados. O tom dos discursos era um só: que a Câmara não poderia se curvar à imprensa, que era a imprensa que queria o fim dos privilégios, e não os cidadãos. Sem comentários.
Com isso a equação não fecha. Conduta moralmente correta = indignação alheia + sentimento de culpa. Indignação há, e muita. Mas e a culpa? Não somos um país cristão? Cadê a culpa, gente? Desse jeito teremos que nos valer do tratamento radical de Laranja Mecânica (o método de Ludovico, uma espécie particularmente cruel de tortura) para os nobilíssimos (?) congressistas. Além do que, há ainda um agravante. Se autoridades (?), que justamente deveriam dar o exemplo, não o fazem, é o caso de o cidadão comum se perguntar: para que agir moralmente? Boa pergunta.
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Doutorando (Filosofia) na Universidade Federal de São Carlos, cronista do jornal O Popular (Goiânia), autor de Epitáfio (Nankin Editorial)