Assim que foi anunciada a morte de Michael Jackson, a mídia mundial ocupou-se da tragédia com uma voracidade que talvez só encontre paralelo na morte da princesa Diana, em 1997. Teve início então um grande show cibernético/televisivo, com imagens de arquivo do ídolo pop misturadas a cenas de fãs em pranto, que por sua vez davam lugar a reportagens especulativas sobre as causas da misteriosa e repentina passagem, aos 50 anos de idade, de um artista ainda capaz de performances atléticas.
De início, a internet comandou o espetáculo. Anunciada em primeira mão por um pequeno site de entretenimento e fofocas sobre celebridades, a notícia quadruplicou o tráfego na rede mundial de computadores, ‘travou’ ou tirou do ar dezenas de sites e colocou o nome do cantor, compositor e dançarino nas primeiras posições em virtualmente todos as principais ferramentas de busca, Google à frente. Em números absolutos – mas não percentualmente – o evento foi mais impactante na rede do que os atentados terroristas de 11 de Setembro, superando com folga a repercussão provocada pela morte da última grande celebridade mundial, a princesa Diana.
E Diana, que também angariava como poucos a simpatia popular, não tinha contra si, ao contrário de Jackson, a ira ou o desprezo de parcelas consideráveis da opinião pública, que as arraigadas suspeitas de pedofilia legaram ao norteramericano. Se despertou compaixão como a esposa desprezada, humilhada publicamente sob a pompa dos cerimoniais reais, Diana soube, por outro lado, tornar-se admirada não apenas pelo intenso envolvimento em campanhas humanitárias, mas pela coragem e determinação com que conduziu o divórcio, confrontando a família real, reconquistando a independência.
A transição vivenciada por Lady Di, de esposa oprimida à diviorciada livre e bem-sucedida, simboliza a própria trajetória da mulher no século 20. Com um charme ímpar e uma elegância natural, era uma espécie de Jackeline Kennedy dos anos 1990, com a vantagem de contrastar seu charme plebeu não com o mais carismático dos presidentes norteamericanos, mas com a mais decadente das instituições de poder: a realeza britânica. Sua morte, também abrupta, interrompera uma trajetória ascendente em termos de reconhecimento popular – como a queda-de-braço post-mortem com a família real por conta de seus funerais, tão bem reencenada no filme A Rainha (The Queen, Stephen Frears, 2006), torna evidente.
Sucesso e decadência
A trajetória de Michael Jackson desenha outra linha no gráfico da vida. A infância pobre, desprovida de seu espaço específico de ludicidade e lazer – substituído pela rotina massacrante de ensaios impingida pelo pai/empresário – o leva à condição de garoto-prodígio dos Jackson 5, mais um dos tantos grupos de sucesso do cast da meca da música pop negra norteamericana, a gravadora Motown. Aos 14 anos parte para uma carreira solo, de início mediana e de sucessos eventuais (Ben, Music and Me). A colaboração com o maestro Quincy Jones inicia-se com festejado Off the Wall (1979), mas é no álbum seguinte, Thriller, que Michael torna-se um fenômeno mundial.
Fenômeno que combina letras inventivas e melodias ‘pegajosas’, com forte ‘pegada’ rítmica, valorizadas pela esmerada produção de Quincy Jones, ao uso intenso do videoclipe de uma forma que nenhum artista ousara antes, produzindo clássicos do gênero, que divulgariam passos de dança copiados por jovens de todo o mundo e tornariam evidente o excepcional dançarino que Michael era. Ele torna-se então um artista de projeção mundial, uma espécie de blockbuster da música pop, para usar a terminologia utilizada no âmbito cinematográfico para designar as megaproduções que angariam todo tipo de público (fenômeno se inicia cinco anos antes de Thriller, com o lançamento de Guerra nas Estrelas, de George Lucas).
Mas o que parecia ser o desabrochar de uma trajetória altamente promissora de um artista de primeira grandeza revelar-se-ia, nos anos seguintes, seu efêmero cume. Tanto do ponto de vista artístico e comercial quanto, sobretudo, em relação à sua vida pessoal, nos anos seguintes e até a sua morte Michael entraria numa espiral negativa e jamais repetiria as performances memoráveis da ‘Era Thriller‘. Seus discos seguintes oscilaram entre repetições em escala menor de uma fórmula desgastada e tentativas malsucedidas de inovação; as acusações de pedofilia se multiplicariam, afetando sua imagem e dilapidando boa parte de sua fortuna em custos e acordos judiciais; seria flagrado em situações bizarras (brincando perigosamente com um bebê numa sacada; vestido de mulher num banheiro em Bahrein); por fim, daria-se o outrora inacraditável anúncio de sua falência.
Ânsia pela imagem
Essa outra face do ídolo como que desapareceu por encanto com o anúncio de sua morte, dando lugar a uma espécie de ‘sessão nostalgia’, a um tempo celebratória e fúnebre. Michael voltou a ser referido como ‘um menino-prodígio’, ‘o artista maior’, ‘o maior dançarino de todos os tempos’. Nos quatro cantos do mundo, hordas de fãs improvisam altares repletos de bilhetes e flores; os ingressos para seu velório são disputados a tapa. A necrolatria se revela como neurose coletiva.
O Brasil é familiarizado com o fenômeno: a morte violenta de duas crianças no ano passado, Ayrton Senna, a longa agonia de Tancredo Neves. Também a santificação automática post-mortem é nossa velha conhecida: Roberto Marinho e Antonio Carlos Magalhães, vulgo Malvadeza, que por décadas foram, justa ou injustamente, dois dos maiores vilões, respectivamente, da mídia e da política nacionais, só faltaram ser canonizados. No caso de Michael, até a pedofilia foi temporariamente despida de sua natureza abjeta e tematizada na piada algo profana, mas de uma mordacidade inocente, segundo a qual a primeira pergunta de Jackson, ao chegar ao céu, teria sido onde estava o Menino Jesus…
O ombudsman da Folha de S. Paulo, Carlos Eduardo Lins da Silva, criticou a cobertura que o jornal dispensou à morte de Michael Jackson: ‘A Folha deu mais espaço e destaque a ele do que os jornais americanos’. Referindo-se às idéias defendidas por Richard Sennett no livro O Declínio do Homem Público, o ombudsman assinalou ainda que:
‘A mídia eletrônica, ensina Sennett, insufla esse ânimo coletivo que exige dos famosos um `strip-tease psíquico´ público permanente (no caso de Michael Jackson, chega até o túmulo). E o faz porque a sociedade assim deseja. O jornalismo impresso deveria ser um contraponto de civilidade. É uma pena que esta Folha pareça se recusar a exercê-lo.’
A reflexão mais importante para o jornalismo diz respeito justamente à ligação entre cobertura midiática e retroalimentação de um processo de necrolatria coletiva, mesmo porque ela pode estar, paradoxalmente, afetando a imagem pública da imprensa, como o demonstra o fato de que tanto em relação a Diana como a Michael Jackson, a mídia foi citada – no caso de Diana, judicialmente – como diretamente responsabilizada pelas mortes: em relação à princesa, devido à perseguição que os papparazzi, na ânsia pela imagem vendável, teriam feito ao carro em que ela se encontrava; no de Jackson, justamente pelos efeitos alegadamente devastadores, em sua vida pessoal, do strip-tease público de que fala Sennett.
Ilhas de sensatez
No histerismo que caracterizou, de modo geral, a cobertura da morte de Michael Jackson, dois depoimentos formaram um oásis de sensatez e sobriedade. O primeiro foi a declaração da jornalista Glória Maria ao noticioso Em Cima da Hora, do canal a cabo Globo News, em que ela descreve as impressões colhidas do convívio com Michael por ocasião da filmagem no Brasil do clipe da música They Dont´ Care about Us. ‘Fragilidade’ foi a palavra mais utilizada pela ex-apresentadora do Fantástico para descrever o artista, que segundo ela, embora se mostrasse gentil e interessado, interagindo com seus coadjuvantes brasileiros, aparentava estar muito doente, sendo visíveis os danos que o vitiligo produzira em boa parte do seu corpo e sua fadiga intermitente.
O outro exemplo vem da coluna de Carlos Heitor Cony intitulada ‘Modos e Modas’ (Folha de S.Paulo, 30/06/2009). Sem a intenção de produzir um obituário, o jornalista produz uma análise sucinta do talento essencial de Michael, em perspectiva histórica:
‘Afirmo e reafirmo que ele é superior a Fred Astaire, até então o maior bailarino do audiovisual de nossa era’ (…) Inventou uma expressão corporal que transcende a expressão musical (…) O detalhe da bengalinha, dos farrapos e do chapéu-de-coco em Chaplin tem equivalentes no mocassim e nas meias brancas de Michael Jackson – um detalhe que poderia parecer cafona, mas nele é marca de uma personalidade fora de série.’
No entanto, Michael, ao contrário, por exemplo, da princesa Diana (para utilizar o mesmo modelo comparativo utilizado no início do artigo), não oferece um punhado de justificativas sociais que ajudem a explicar o enigma de seu culto, além dos limites do fascínio que desperta sua própria arte, há tempos decadente. Além do peso das reiteradas acusações de pedofilia – das quais nunca foi capaz de se dissociar de modo convincente, muito pelo contrário –, Jackson foi talvez o artista que teve mais poder de brandir a bandeira da negritude como instrumento de afirmação racial – mas, sem que tenha permitido saber se por opção pessoal ou em decorrência do vitiligo, sua imagem ficou paras muitos ligada à negação de sua própria raça.
Até a trajetória da pobreza para o sucesso milionário através do trabalho duro reverteu-se contra ele, não apenas pelos declarados traumas que a ‘ausência de infância’ lhe causara, mas pela extrema futilidade com que administrou sua fortuna, a ponto desta alegadamente se esvair em dívidas ao final de sua vida. Mas Michael Jackson, morto, volta ao topo das paradas.
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Jornalista e cineasta, doutorando em Comunicação pela UFF; seu blog