Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A música em tempos voláteis

Na semana passada, no seu programa na TV Globo, o renascentista apresentador, autor e comediante Jô Soares declarou que doou toda sua coleção de discos aos músicos de sua banda. Dizendo-se fã da mídia digital, acusou o vinil de anacronismo, afirmando que para quem gosta de ouvir chiado, som defeituoso e se sente atraído por algo preto e redondo com um buraco no meio, então o velho long play é recomendável. Apesar do tom piadístico, discordo totalmente.

O disco de vinil assim como foi concebido, tendo passado ao longo dos anos por vários processos de desenvolvimento tecnológico, do 78 ao 33 rotações, do mono ao quadrifônico, (principalmente entre os anos 1930 e 1990, período das gravações analógicas), é contentor do registro em áudio do que de melhor se produziu na história recente da música moderna em nosso planeta. Os criadores musicais realizavam discos como obras acabadas, como os contos, romances, pinturas, filmes ou peças de teatro. Quando pensamos nas principais gravações produzidas pelos grandes artistas de nosso tempo, nos vêm à mente títulos de seus já clássicos discos de vinil e não de seus CDs.

Hoje, na indústria do entretenimento do mundo globalizado, tanto no chamado mainstream, como em largos setores da segmentada ou solitária (por vezes quixotesca) cena independente, a música popular se digitalizou, se uniformizou, se acomodou e está perdendo dramaticamente sua identidade, singularidade, seu arrojo e criatividade. No mundo dos Ipods, downloads e MP3, a obra fechada e autoral parece já não ter mais sentido. Como o que passou a interessar agora ao novo consumidor são single tracks, ou seja, músicas soltas, desprendidas do conjunto e da concepção artística em si, as faixas contidas nos CDs que são oferecidas a venda, por exemplo, nas web lojas para download dos usuários, muitas vezes nem estão relacionadas na seqüência tão meticulosamente editada em estúdio, mas em ordem alfabética, desvirtuando assim o conceito original da obra musical.

Ritual prazeroso

A atual tendência da indústria fonográfica multinacional e corporativa é, fundamentalmente, distribuir produtos descartáveis, dirigidos a nichos específicos e compartimentados, sem valor de permanência.

Por isso, para não se descaracterizarem por completo, e obviamente por motivos comerciais, cada vez mais freqüente e ciclotímicamente, as majors destacam seus agentes escafandristas para procurar em seus baús e arquivos material extraído dos velhos vinis, para relançamento em CD.

Outra grave questão é a nova chaga trazida pela digitalizaçao – a pirataria de CDs e DVDs –, que ligada aos grandes cartéis do crime internacional só pôde surgir, brotar e florescer com desenvoltura e esplendor, na era digital, na cultura do sample, da cópia, do cover, do clone, do resgate, da desgastada releitura, em franca oposição à invenção, ao artesanato, à coragem e risco artísticos, ao inusitado, ao original.

Como profetizava o legendário animador Chacrinha, no mundo dos 15 minutos de celebridade tudo se copia, tudo se imita, tudo se banaliza. Cumpre ressaltar também que a pirataria encontrou na economia informal, excludente e marginalizada de países pobres como o nosso, um campo acolhedor e próspero.

Uma última abordagem do tema é o paradoxo tecnológico da durabilidade. Segundo técnicos e experts, a exemplo da película cinematográfica e do tape, o disco de vinil é mais durável e resistente do que o CD, que é comprovadamente volátil. No início desse novo século, na era da revolução genética, fico muito preocupado com o destino do patrimônio cultural, artístico e histórico de nossa ameaçada humanidade, que ao sofrer um inexorável e progressivo processo de digitalização, ao invés de se perenizar, corre o risco, também por outros sérios e conhecidos motivos, de brevemente se desmaterializar.

Finalmente, acrescente-se que igualmente à leitura de um bom livro ou texto, e à projeção em 35mm de um belo filme, ainda não há nada mais prazeroso do que o ritual da audição, num excelente pick-up, de um clássico vinil, em ótimo estado de conservação, com a velha e artística capa e seu encarte nas mãos. Bendito anacronismo. Inenarrável, Jô!

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Músico