Acho muito chato ter que comentar por várias vezes assuntos técnicos que vão parar na imprensa – isso deve irritar leitores e até gerar alguma dúvida sobre a utilidade desse tipo de coisa. Acontece que já que estamos observando a imprensa, quando ela insiste em recaídas constantes nos mesmos equívocos, e ainda mais envolvendo instituições do porte de uma BBC e da Folha.com, torna-se quase impossível não haver manifestação. Nas edições online de BBC Brasil e Folha.com de 6 de maio de 2011, lá está uma notícia com destaque na área de Saúde: café, sexo e assoar o nariz podem levar a derrame. Aparentemente, uma novidade importantíssima, com alerta sobre uma grave consequência de atividades cotidianas. Mas é isso mesmo?
Vejamos. As matérias remetem a artigo publicado no periódico Stroke, bastante respeitado, por pesquisadores do Centro Médico da Universidade de Utrecht, na Holanda. Em resumo, o que o artigo original informa é que situações que levem a aumento súbito da pressão arterial podem levar à ruptura de um aneurisma cerebral, o que causa sangramento, o tal do derrame, ou AVC hemorrágico. E esforços podem causar esse aumento de pressão, sendo exemplos importantes citados assoar o nariz com força, o ato sexual e defecar. O uso da cafeína contribuiria para a manutenção ou piora de um quadro de hipertensão arterial.
O trabalho apareceu em revista científica prestigiada, mas sofre de sérias questões técnicas: foram estudados apenas 250 pacientes. E esses dados estão muito distantes de representarem novidades, pois são conhecidos há muitas décadas pelos neurologistas.
Isso é sabido há muito tempo
Quando um paciente se queixa de que teve uma dor de cabeça importante e súbita durante o ato sexual ou ao evacuar, por exemplo, a primeira suspeita é de que tenha havido um sangramento cerebral; mesmo com um quadro clínico bom, é imperativo examinar bem a pessoa com a queixa e realizar uma tomografia computadorizada de crânio, exame rápido e simples, que elimina ou confirma com precisão a presença de sangue. Caso haja a presença do mesmo, há necessidade de complementação da investigação para saber a causa, que pode, sim, ser um aneurisma roto, cuja conduta terapêutica quase sempre é cirúrgica. Mas o sangramento pode ser mais grave e o paciente já chegar em coma, tornando o caso mais complicado. Nem sempre os sangramentos se devem à ruptura de aneurismas e também é fato conhecido há muito tempo que autópsias de idosos que faleceram de causas naturais demonstram muitas vezes sinais de doenças próprias do envelhecimento – em vários casos, aneurismas intactos, que nunca se romperam. Com o mesmo raciocínio, um paciente que realize um exame de imagem por uma causa qualquer, como tomografia computadorizada ou ressonância magnética, e se encontre no mesmo um aneurisma que não se manifestou, é candidato à cirurgia que corrige definitivamente essa anomalia vascular. Há até um velho ditado na especialidade – ‘aneurisma achado é aneurisma operado’, pois não há como saber se aquele achado um dia vai sangrar. É melhor prevenir e operar antes que aconteça algo mais grave.
Isso, todo neurologista, neurocirurgião, médico socorrista, plantonista de pronto-socorro e intensivista, por exemplo, sabe há muito tempo.
Quem perde com tudo isso é a população
Quais as questões implicadas nessa divulgação? Vamos lá.
1) Um trabalho com essa falta de novidades só se explica pela contaminação do meio acadêmico médico do comportamento competitivo das corporações. Em outras palavras, o que mais vale para qualificar um docente e/ou pesquisador é a quantidade de trabalhos publicados, não necessariamente ligados à sua qualidade. Em universidades americanas, esse critério às vezes é tão rígido que prestigiados professores podem ser demitidos por ‘queda de produção’, ou seja, por publicarem menos artigos em periódicos científicos em um ano que no anterior. Tanto é assim que nos EUA nasceu uma expressão que se disseminou globalmente: publish or perish, ou em nosso vernáculo, publique ou morra. Isso dispensa maiores comentários…
2) Não há quem filtre trabalhos científicos importantes de outros que só estão por aí para preencher a ‘cota’ dos pesquisadores na imprensa leiga. Desse modo, um press release da revista ou editora, ou uma entrevista regional, podem levar a manchetes internacionais.
3) O lado comercial grita bastante e nada como dar uma ampliada em alguns setores de uma publicação científica para fabricar uma manchete: vamos destacar que café, sexo e assoar o nariz podem levar a derrames. No mínimo, vai chamar a atenção para uma lida rápida.
4) E falta de revisão básica: na reprodução da entrevista de uma das pesquisadoras, há uma citação entre aspas que fala em fatores que diminuem a pressão arterial, quando todo o contexto é o oposto, o aumento da mesma…
E assim caminha a humanidade. Publicações inúteis aos montes, como se houvesse metas financeiras como numa instituição bancária, e órgãos de imprensa despreparados e/ou espertinhos, para angariar atenção. E sei que estou falando de uma universidade europeia importante, mesmo sem uma grife como Harvard ou Oxford, assim como da BBC e da Folha.
Para variar, pela enésima vez, quem perde com tudo isso é a população, que deve ser corretamente informada, a qualidade da pesquisa científica, a ética no meio acadêmico e o bom jornalismo.
Pela frequência com que abordo esse tipo de assunto já estou me convencendo de que é um caminho sem volta. Shame on you, guys!
******
Médico, mestre em Neurologia Clínica pela Unifesp